O que é educação liberal? - I
Leo Strauss
Discurso proferido em 6 de Junho de 1959, em cerimônia de graduação de curso voltado para a educação liberal de adultos.
Leo Strauss nasceu na Alemanha, em 1899. Chegou aos Estados Unidos em 1938, dedicando-se ao ensino de Ciência Política e Filosofia na New School for Social Research. Lecionou ainda na Universidade de Chicago, e na Universidade Hebraica de Jerusalém foi professor visitante entre 1954-55. Publicou, entre outros, os livros The Political Philosophy of Hobbes, Natural Right and History, e Thoughts on Machiavelli. Nenhum traduzido para o português.
Adquiristes uma educação liberal e vos felicito por esse feito. Se tivesse o direito, eu vos louvaria por essa conquista. Porém, seria desleal com a obrigação que assumi se não acrescentasse às minhas felicitações um aviso, e a educação liberal que conquistastes impedirá que esse aviso seja entendido como um conselho desesperado.
A educação liberal é a educação na cultura e para a cultura. O produto final da educação liberal é um ser humano cultivado. Cultura significa originalmente agricultura: o cultivo do solo e de seus produtos, cuidar do solo e melhorá-lo conforme sua natureza. Hoje, por derivação, Cultura significa o cultivo do espírito (mind), o zelo e o aperfeiçoamento das faculdades inatas do espírito em concordância com sua natureza. Assim como o solo precisa de homens que o cultivem, o espírito precisa de mestres. Mas mestres não são tão fáceis de se obter quanto fazendeiros. Os mestres mesmos são discípulos, e devem ser discípulos. Mas não pode haver uma regressão infinita: definitivamente deve haver mestres que não são discípulos. São esses os grandes, ou, para evitar qualquer ambigüidade, os maiores espíritos. E esses homens são raríssimos, sendo provável que não os encontremos em classe alguma, nem em parte alguma. É muita sorte que um esteja vivo. Para fins práticos, os discípulos, em qualquer grau de competência, somente têm acesso a esses homens através dos grandes livros. A educação liberal, dessa forma, consistirá em estudar com o devido cuidado as obras que os maiores espíritos nos legaram – um estudo no qual os educandos mais versados auxiliam os menos experientes, e os iniciantes.
Isso não é tarefa fácil, como pode parecer ao considerarmos a fórmula que acabei de mencionar. A fórmula requer longos esclarecimentos. Muitas vidas foram e devem ainda ser gastas em tais esclarecimentos. Por exemplo, o que se quer dizer com a observação de que os grandes livros devem ser estudados “com o devido cuidado”? Menciono, agora, apenas uma dificuldade que é obvio para todos aqui: os maiores espíritos não nos dizem a mesma coisa com relação aos assuntos mais importantes. A comunidade desses homens está tomada por discórdia, e por discórdia de variados tipos. Quaisquer que sejam as conseqüências que isso acarreta, está implicada também a de que a educação liberal não pode ser mera doutrinação. Mencionarei ainda outra dificuldade: “Educação liberal é educação na cultura”. Mas em qual cultura? Cultura no sentido da tradição ocidental, respondemos. Contudo, a cultura ocidental é apenas uma dentre diversas outras culturas. Limitando-nos à cultura do Ocidente não estaríamos condenando a educação liberal a um certo paroquialismo? E não é essa atitude incompatível com o liberalismo, com a generosidade e com a tolerância da educação liberal? Nossa noção de educação liberal parece não convir a uma época consciente do fato de que não há cultura do espírito humano, mas uma variedade de culturas. É obvio que a cultura passível de uso no plural não é a mesma coisa que a cultura singulare tantum, a qual pode ser usada apenas no singular. A cultura, como dizem hoje, já não é mais absoluta, tornou-se relativa. Não é fácil dizer o que a cultura suscetível de uso no plural significa. E dessa obscuridade alguns sugeriram, explícita ou implicitamente, que cultura é qualquer padrão de conduta comum a um grupo humano. Daí, ninguém hesitar em falar da cultura dos subúrbios ou das gangues juvenis, delinqüentes ou não. Em outras palavras, todo homem que não esteja num hospício é um ser humano com cultura, pois ele participa de uma cultura. Na fronteira da investigação emerge a questão se não haveria culturas entre os próprios internos. Em contraste com seu sentido original, o uso atual da palavra cultura é como se alguém dissesse que o cultivo de um jardim consiste em espalhar a esmo latinhas vazias e garrafas de uísque e em lançar, para tudo quanto é lado, papéis usados do mais variado tipo. Tendo chegado a esse ponto, percebemos que de algum modo nos perdemos no caminho. Deixai-nos então propor um novo começo levantando a questão: aqui e agora, a que se pode referir a educação liberal?
A educação liberal é uma espécie de alfabetização: um tipo de educação nas letras e através das letras. Não é necessário por em causa a alfabetização: todo eleitor sabe que graças a ela a democracia moderna mantém-se de pé ou desmorona. Para entender essa necessidade, devemos refletir sobre a democracia moderna. O que ela é? Já disseram uma vez que a democracia é o regime que para sobreviver depende da virtude: um regime no qual todos ou quase todos os adultos são homens de virtude, e, uma vez que virtude requer sabedoria, um regime no qual seus homens são virtuosos e sábios, ou seja, uma sociedade na qual a maioria dos adultos desenvolveram em alto grau a própria razão, uma sociedade racional. Em outras palavras, a democracia é uma aristocracia que se ampliou e tornou-se universal. Antes da emergência da democracia moderna houve quem duvidasse da possibilidade da democracia entendida nesse sentido. Como colocou um dos dois maiores teóricos da democracia: “Se houvesse um povo constituído de deuses, ele se regeria democraticamente. Um governo assim tão perfeito não é apropriado para seres humanos”. Essa voz baixa e serena é hoje um alto-falante poderoso. Existe uma ciência inteira –que eu, entre tantos, declaro ensinar, a ciência política – que, por assim dizer, não possui outro assunto se não o contraste entre o conceito original de democracia, ou o que se pode chamar de ideal de democracia, e a democracia como ela é. Conforme uma visão radical que predomina na profissão, a democracia ideal era mera ilusão e a única coisa que importa é o comportamento das democracias e dos homens que dela participam. A democracia moderna, longe de ser uma aristocracia universal, seria o governo das massas, se não fosse o fato de que as massas não podem governar, mas sim são governadas por elites, grupos de homens que por alguma razão estão no topo ou possuem boa chance de alcançá-lo. Diz-se que uma virtude das mais importantes e necessária para o livre exercício da democracia, no tocante à massa, é a apatia eleitoral, a falta de espírito público. Realmente, o exemplo comum da democracia moderna são aqueles cidadãos que nada lêem exceto o caderno de esportes e a página de quadrinhos. Então, na verdade a democracia não é governo das massas, mas cultura de massa. Cultura de massa é a cultura destinada aos talentos mais medíocres, adquirida a baixo preço e sem esforço moral ou intelectual algum. Mas mesmo uma cultura de massa, e justamente ela, necessita ser provida constantemente das chamadas novas idéias, que são os produtos do que chamamos de mentes criativas: até comerciais perdem seu poder de atração se não mudam de tempos
Alguém pode afirmar que essa idéia de educação liberal é unicamente política, que ela dogmaticamente arroga a si a virtude da moderna democracia. Não podemos voltar as costas à sociedade moderna? Não podemos retornar ao estado de natureza, à vida das tribos que não possuíam escrita? Não estamos sufocados, enojados, degradados pela massa de material impresso, esses cemitérios de tão lindas e majestosas florestas? Não basta dizer que isso é mero romantismo, que não podemos retornar ao estado de natureza: não poderão as gerações futuras, após um cataclismo cevado pelo homem, serem compelidas a viver em tribos iletradas? Nossos pensamentos com relação às guerras nucleares não serão afetados por esses panoramas? Certo é que os horrores da cultura de massa tornam inteligível a ânsia por um retorno à natureza. Uma sociedade sem escrita é no máximo uma sociedade governada por um velho costume que remonta aos fundadores originais, deuses ou filhos ou pupilos de deuses; e como nela não há literatura, seus herdeiros recentes não podem estar em contato direto com os fundadores originais; eles não podem saber se seus pais ou avós afastaram-se do que tencionavam originalmente os fundadores, ou se deformaram a mensagem divina com simples adições ou subtrações humanas. Daí uma sociedade iletrada não poder agir em concordância com o principio de que o melhor é o mais antigo. Só a literatura proveniente direto dos fundadores permite a estes falarem diretamente com seus herdeiros. É auto-contraditório, portanto, querer voltar à ignorância. (...)
continua um dia...