Tuesday, May 30, 2006

O que é educação liberal? - I

Leo Strauss

Discurso proferido em 6 de Junho de 1959, em cerimônia de graduação de curso voltado para a educação liberal de adultos.


Leo Strauss nasceu na Alemanha, em 1899. Chegou aos Estados Unidos em 1938, dedicando-se ao ensino de Ciência Política e Filosofia na New School for Social Research. Lecionou ainda na Universidade de Chicago, e na Universidade Hebraica de Jerusalém foi professor visitante entre 1954-55. Publicou, entre outros, os livros The Political Philosophy of Hobbes, Natural Right and History, e Thoughts on Machiavelli. Nenhum traduzido para o português.


Adquiristes uma educação liberal e vos felicito por esse feito. Se tivesse o direito, eu vos louvaria por essa conquista. Porém, seria desleal com a obrigação que assumi se não acrescentasse às minhas felicitações um aviso, e a educação liberal que conquistastes impedirá que esse aviso seja entendido como um conselho desesperado.

A educação liberal é a educação na cultura e para a cultura. O produto final da educação liberal é um ser humano cultivado. Cultura significa originalmente agricultura: o cultivo do solo e de seus produtos, cuidar do solo e melhorá-lo conforme sua natureza. Hoje, por derivação, Cultura significa o cultivo do espírito (mind), o zelo e o aperfeiçoamento das faculdades inatas do espírito em concordância com sua natureza. Assim como o solo precisa de homens que o cultivem, o espírito precisa de mestres. Mas mestres não são tão fáceis de se obter quanto fazendeiros. Os mestres mesmos são discípulos, e devem ser discípulos. Mas não pode haver uma regressão infinita: definitivamente deve haver mestres que não são discípulos. São esses os grandes, ou, para evitar qualquer ambigüidade, os maiores espíritos. E esses homens são raríssimos, sendo provável que não os encontremos em classe alguma, nem em parte alguma. É muita sorte que um esteja vivo. Para fins práticos, os discípulos, em qualquer grau de competência, somente têm acesso a esses homens através dos grandes livros. A educação liberal, dessa forma, consistirá em estudar com o devido cuidado as obras que os maiores espíritos nos legaram – um estudo no qual os educandos mais versados auxiliam os menos experientes, e os iniciantes.

Isso não é tarefa fácil, como pode parecer ao considerarmos a fórmula que acabei de mencionar. A fórmula requer longos esclarecimentos. Muitas vidas foram e devem ainda ser gastas em tais esclarecimentos. Por exemplo, o que se quer dizer com a observação de que os grandes livros devem ser estudados “com o devido cuidado”? Menciono, agora, apenas uma dificuldade que é obvio para todos aqui: os maiores espíritos não nos dizem a mesma coisa com relação aos assuntos mais importantes. A comunidade desses homens está tomada por discórdia, e por discórdia de variados tipos. Quaisquer que sejam as conseqüências que isso acarreta, está implicada também a de que a educação liberal não pode ser mera doutrinação. Mencionarei ainda outra dificuldade: “Educação liberal é educação na cultura”. Mas em qual cultura? Cultura no sentido da tradição ocidental, respondemos. Contudo, a cultura ocidental é apenas uma dentre diversas outras culturas. Limitando-nos à cultura do Ocidente não estaríamos condenando a educação liberal a um certo paroquialismo? E não é essa atitude incompatível com o liberalismo, com a generosidade e com a tolerância da educação liberal? Nossa noção de educação liberal parece não convir a uma época consciente do fato de que não há cultura do espírito humano, mas uma variedade de culturas. É obvio que a cultura passível de uso no plural não é a mesma coisa que a cultura singulare tantum, a qual pode ser usada apenas no singular. A cultura, como dizem hoje, já não é mais absoluta, tornou-se relativa. Não é fácil dizer o que a cultura suscetível de uso no plural significa. E dessa obscuridade alguns sugeriram, explícita ou implicitamente, que cultura é qualquer padrão de conduta comum a um grupo humano. Daí, ninguém hesitar em falar da cultura dos subúrbios ou das gangues juvenis, delinqüentes ou não. Em outras palavras, todo homem que não esteja num hospício é um ser humano com cultura, pois ele participa de uma cultura. Na fronteira da investigação emerge a questão se não haveria culturas entre os próprios internos. Em contraste com seu sentido original, o uso atual da palavra cultura é como se alguém dissesse que o cultivo de um jardim consiste em espalhar a esmo latinhas vazias e garrafas de uísque e em lançar, para tudo quanto é lado, papéis usados do mais variado tipo. Tendo chegado a esse ponto, percebemos que de algum modo nos perdemos no caminho. Deixai-nos então propor um novo começo levantando a questão: aqui e agora, a que se pode referir a educação liberal?

A educação liberal é uma espécie de alfabetização: um tipo de educação nas letras e através das letras. Não é necessário por em causa a alfabetização: todo eleitor sabe que graças a ela a democracia moderna mantém-se de pé ou desmorona. Para entender essa necessidade, devemos refletir sobre a democracia moderna. O que ela é? Já disseram uma vez que a democracia é o regime que para sobreviver depende da virtude: um regime no qual todos ou quase todos os adultos são homens de virtude, e, uma vez que virtude requer sabedoria, um regime no qual seus homens são virtuosos e sábios, ou seja, uma sociedade na qual a maioria dos adultos desenvolveram em alto grau a própria razão, uma sociedade racional. Em outras palavras, a democracia é uma aristocracia que se ampliou e tornou-se universal. Antes da emergência da democracia moderna houve quem duvidasse da possibilidade da democracia entendida nesse sentido. Como colocou um dos dois maiores teóricos da democracia: “Se houvesse um povo constituído de deuses, ele se regeria democraticamente. Um governo assim tão perfeito não é apropriado para seres humanos”. Essa voz baixa e serena é hoje um alto-falante poderoso. Existe uma ciência inteira –que eu, entre tantos, declaro ensinar, a ciência política – que, por assim dizer, não possui outro assunto se não o contraste entre o conceito original de democracia, ou o que se pode chamar de ideal de democracia, e a democracia como ela é. Conforme uma visão radical que predomina na profissão, a democracia ideal era mera ilusão e a única coisa que importa é o comportamento das democracias e dos homens que dela participam. A democracia moderna, longe de ser uma aristocracia universal, seria o governo das massas, se não fosse o fato de que as massas não podem governar, mas sim são governadas por elites, grupos de homens que por alguma razão estão no topo ou possuem boa chance de alcançá-lo. Diz-se que uma virtude das mais importantes e necessária para o livre exercício da democracia, no tocante à massa, é a apatia eleitoral, a falta de espírito público. Realmente, o exemplo comum da democracia moderna são aqueles cidadãos que nada lêem exceto o caderno de esportes e a página de quadrinhos. Então, na verdade a democracia não é governo das massas, mas cultura de massa. Cultura de massa é a cultura destinada aos talentos mais medíocres, adquirida a baixo preço e sem esforço moral ou intelectual algum. Mas mesmo uma cultura de massa, e justamente ela, necessita ser provida constantemente das chamadas novas idéias, que são os produtos do que chamamos de mentes criativas: até comerciais perdem seu poder de atração se não mudam de tempos em tempos. Mas a democracia, ainda que considerada como a casca que protege a sensível cultura de massa, exige no longo prazo qualidades de natureza bem diferente: de dedicação, de concentração, de amplitude e de profundidade. Entendemos agora mais facilmente a que se refere a educação liberal. Ela é a contraposição à cultura de massa e aos seus efeitos corrosivos, a sua tendência inata em produzir nada a não ser “especialistas sem espírito ou visão e sibaristas sem coração”. A educação liberal é a escada com a qual tentamos nos levar da democracia das massas à democracia no sentido original. É o esforço necessário para se encontrar uma nobreza dentro da sociedade democrática de massa. Ela traz à memória dos membros de uma democracia de massa que têm ouvidos para escutar, a grandeza humana.

Alguém pode afirmar que essa idéia de educação liberal é unicamente política, que ela dogmaticamente arroga a si a virtude da moderna democracia. Não podemos voltar as costas à sociedade moderna? Não podemos retornar ao estado de natureza, à vida das tribos que não possuíam escrita? Não estamos sufocados, enojados, degradados pela massa de material impresso, esses cemitérios de tão lindas e majestosas florestas? Não basta dizer que isso é mero romantismo, que não podemos retornar ao estado de natureza: não poderão as gerações futuras, após um cataclismo cevado pelo homem, serem compelidas a viver em tribos iletradas? Nossos pensamentos com relação às guerras nucleares não serão afetados por esses panoramas? Certo é que os horrores da cultura de massa tornam inteligível a ânsia por um retorno à natureza. Uma sociedade sem escrita é no máximo uma sociedade governada por um velho costume que remonta aos fundadores originais, deuses ou filhos ou pupilos de deuses; e como nela não há literatura, seus herdeiros recentes não podem estar em contato direto com os fundadores originais; eles não podem saber se seus pais ou avós afastaram-se do que tencionavam originalmente os fundadores, ou se deformaram a mensagem divina com simples adições ou subtrações humanas. Daí uma sociedade iletrada não poder agir em concordância com o principio de que o melhor é o mais antigo. Só a literatura proveniente direto dos fundadores permite a estes falarem diretamente com seus herdeiros. É auto-contraditório, portanto, querer voltar à ignorância. (...)
continua um dia...

Monday, May 29, 2006

Worth Quoting III

Mais uma da série "Você não vai ver isso por aqui". Jack Cashill, autor de

Hoodwinked : How Intellectual Hucksters Have Hijacked American Culture, em entrevista à Front Page Magazine:

(...)"FP: Give us a few words about what you discovered about Ward Churchill, Rigoberta Menchu, Margaret Sanger and Alfred Kinsley.

Cashill: I discovered that serious intellectual fraud is a collaborative process. In Sanger's case, the cultural establishment has conspired to suppress her full-throated support for a brand of eugenics that makes the Nazis look weak at the knees. Her writings are kept alive only by her opponents. In Kinsey's case, just as his child torture experiments were becoming well-known, Hollywood circled the wagon with the hagiography, "Kinsey." The Nobel Prize committee refuses to take back Menchu's Prize even after it learns that her autobiography was falsified from beginning to end, and it served no purpose but to prolong a useless civil war. Churchill's case shows just how intellectually bankrupt is the American university. He was promoted to department chair after his "Little Eichmanns" screed. And even after many of his writings have proved as false as his Indian identity, his colleagues continue to rally around him.

FP: Can you tell us a bit about Kinsey’s child torture experiments?

Cashill: There is no evidence that Kinsey himself was a pedophile as his defenders are at pains to point out. There is no denying, however, that he encouraged pedophiles to perform sexual experiments on children as young as two months and instructed them in the kind of data he wanted. His breakthrough book, The Sexual History of the Human Male, openly charts the experiments on at least 600 boys. Kinsey also knowingly skewed the statistics he gathered to make his own homosexuality and masochism seem more normative.

FP: And this guy is venerated by the Left? Are there any leftists that have come out and condemned Kinsey for this sexual abuse of young boys? Can you tell us a bit about his masochism? I remember reading that this guy put metal wires up his urethra. What was wrong with him do you think?

Cashill: Oddly enough, Kinsey was an anti-communist Republican, the one Republican in the last century that the Left has embraced and, not coincidentally, the only one I know who routinely stuck hairbrushes (yikes!) up his penis. He was a sick pup. He likely had some father issues. There is no criticism of Kinsey from the Left. None. The Left has, however, savaged Kinsey's critics like Judith Reisman. Since she is of Jewish descent, the Left has had to denounce her as "a tool of the Christian right."


FP: Out of everyone you studied, who would you say was/is the most wretched human being? Why?


Cashill: The winner here is Walter Duranty, the New York Times reporter who knowingly concealed the Stalin terror-famine that left some seven million of his fellow citizens dead. Duranty did not even have the excuse of sincerity. He had gotten mixed up in the "Paris Workings," a fashionable series of black masses on the eve of World War I, and lost whatever faith he had. From that point on, he did as he pleased. Appropriately, his book about this era is titled, "I write as I please." He still has his Pulitzer for his Moscow reporting and is still honored in the Times' Hall of Heroes, a reality that appalled even Jayson Blair".(...)

Thursday, May 18, 2006

worth quoting - II

do artigo de Roger Kimball publicado no TNC.

"... Kolakowski puts it in his introduction to My Correct Views on Everything,
Communism was not the crazy fantasy of a few fanatics, nor the result of human stupidity and baseness; it was a real, very real part of the history of the twentieth century, and we cannot understand this history of ours without understanding communism. We cannot get rid of this specter by saying it was just 'human stupidity', or 'human corruptibility.' The specter is stronger than the spells we cast on it. It might come back to life."

(...) "Writing about the amorphous New Left of the 1960s, for example, Kolakowski notes that although
the ideological fantasies of this movement … were no more than a nonsensical expression of the whims of spoilt middle-class children, and while the extremists among them were virtually indistinguishable from Fascist thugs, the movement did without doubt express a profound crisis of faith in the values that had inspired democratic societies for many decades. … The New Left explosion of academic youth was an aggressive movement born of frustration, which easily created a vocabulary for itself out of Marxist slogans … : liberation, revolution, alienation, etc. Apart from this, its ideology really has little in common with Marxism. It consists of “revolution” without the working class; hatred of modern technology as such; … the cult of primitive societies … as the source of progress; hatred of education and specialized knowledge.
Sound familiar?"

a isso acrescento: O Socialismo é doença do espírito! escreverei um dia sobre isso...agora estou estudando Gramsci...dever de consciência...que Deus nos ajude.

Tuesday, May 16, 2006

A verdade só serve a seus escravos

A meia dúzia de leitores desse blog deve ter percebido que nosso interesse aqui é pôr o vistante, na medida do possível, em contato com grandes obras e grandes homens. A intenção não é mostrar erudição ou pedantismo, atitudes ridículas e típicas na nossa "socidade erótica", como diria Meira Penna; mas sim permitir um primeiro, ou mais avançado, contato com a Alta Cultura, que aos poucos vai sumindo do horizonte intelectual brasileiro em nome do politicamente correto, da massificação do ensino e do relativismo cultural marxista, além dos já arraigados preconceitos anti- metafícos das ciências sociais... É, talvez , tentar despertar o visitante, da mediocridade e da ignorância cotidianas, para a vida interior e da verdade, para a dimensão vertical da existência -- por sinal, o único modo capaz de criar um homem verdadeiramente ético --, empresa extremamente solitária e onerosa e por isso mesmo digna de ser vivida. Se isso é pra poucos, "junta-te à minoria", afinal, como escreveu A.D. Sertillanges "a verdade só serve a seus escravos".


Algumas passagens de Mário Vieira de Mello - II

Em defesa de Voegelin

“Consideremos uma outra vítima da campanha surda de hostilidade que a cultura vassala do poder move hoje contra o humanismo. Voegelin é descrito nas orelhas de seus livros como um dos maiores historiadores de nossos tempos, como um dos mais profundos e estimulantes do século XX. Entretanto, se passarmos em revista o que vem produzindo a literatura filosófica contemporânea, veremos que são raríssimas as referencias feitas a ele. Em três livros que dão razoavelmente um panorama da produção filosófica de nossos dias e dos debates ocorridos – After MacIntyre, uma coletânea de estudos sobre a obra de Alasdair MacIntyre, Modernism as a philosophical problem, de Robert B. Pippin, e The philosophical discourse of modernity, de Jurgen Habermas – o nome de Voegelin não é nem mesmo mencionado. Mas o desdém que lhe é assim manifestado ele não o retribui. Voegelin era um gentleman. Quem estudar com cuidado sua obra verá que há nela formulações que só poderiam ser interpretadas como uma crítica severa aos Estados Unidos. Mas o modo de apresentação elimina qualquer choque mais direto. Em O cidadão, eu, que já havia citado por inteiro o julgamento mais severo que sobre os Estados Unidos pronunciou Voegelin, aventei a hipótese de que havia sido a preocupação de não ofender o amor próprio dos americanos o motivo pelo qual fora retardada, por cerca de dez anos, a publicação do texto em que ele expressara aquele julgamento, apresentado de modo propício a poupar suscetibilidades. Agora, em palavras captadas por Elias Sandoz, em entrevista com Voegelin que deu origem ao livro Reflexões Autobiográficas, minha hipótese parece substancialmente confirmada. Vale a pena cita-las: “No que diz respeito à institucionalização da ordem existencial, a sociedade americana parece oferecer algumas vantagens quando comparada a outras sociedades nacionais do mundo ocidental. Mas preciso admitir, antes de mais nada, que sou suspeito nesta matéria porque, afinal de contas, tive de fugir, para não morrer, da cena política da Europa Central e fui recebido generosamente na América. Isto naturalmente deu margem a preconceitos. Espero, entretanto, que as observações que farei em seguida não estejam excessivamente marcadas por eles”. Esse prejudice foi uma coisa que sempre me pareceu inibir o julgamento de Voegelin sobre os Estados Unidos. A posição filosófica de Voegelin é a de uma crítica radical, sem compromissos, à cultura contemporânea em todas as formas pelas quais ela se manifesta. A cultura como expressão suprema da existência humana ia desaparecendo e o seu lugar era tomado pela ideologia. A sua critica visava a cultura do mundo ocidental como um todo, mas havia coisas em seus textos que se referiam claramente à realidade da sociedade americana – como quando diz, por exemplo, nas mesmas Reflexões Autobiográficas citadas acima: “Com relação ao clima dominante nas ciências sociais, o filosofo na América se encontra em situação idêntica à de Soljenitzin na União de Escritores Soviéticos – a diferença importante residindo, naturalmente, no fato de que nossa União de Escritores Soviéticos não dispõe de poder governamental para eliminar scholars. Por isso, quando em certas ocasiões Voegelin parece excetuar os Estados Unidos do rigor de suas críticas, deveríamos, creio eu, admirar não a exatidão do filósofo mas a gratidão e as boas maneiras do gentleman que ele era.

E como seria possível excetuar os Estados Unidos da sua crítica se sua bête noire era e sempre havia sido a ideologia? A sociedade norte-americana não era nem marxista, nem fascista, nem nazista, mas era indubitavelmente uma sociedade organizada em torno das estruturas de poder. A obsessão do poder é uma ideologia tão deformadora quanto as ideologias marxista, fascista ou nazista. Voegelin, que incluiu nas suas análises da ideologia a idéia de poder sob a forma de “instrumentalização das paixões”, assim o fez para colocar a sociedade norte-americana sob a mira de sua análise. Através desse processo, o legislador – o legislador norte-americano – introduz o poder no mais íntimo da alma humana, fazendo-a agir não de acordo com seus instintos e emoções naturais, não de acordo com o ordenamento ético promovido pela atividade do princípio racional, mas de acordo com um interesse determinado, o interesse esclarecido em virtude do qual uma maior soma de poder lhe será conferida. O legislador norte-americano afasta com impaciência a idéia de uma ordem humanista na alma do indivíduo; o de que ele precisa é que esta alma esteja em estado de desordem para que possa ser instrumentalizada.

O anti-humanismo é, assim, se nossas deduções são corretas, um ingrediente essencial da estrutura da sociedade norte-americana; não é simplesmente o resultado da influência de atitudes intelectuais como as de um Foucault ou de um Heidegger, mas qualquer coisa sobre a qual se alicerçam realmente as estruturas sociais da nação. Como, pois, poder-se-ia conceber que um filósofo tão arraigadamente humanista como Voegelin tivesse um acolhimento que ultrapassasse os limites da cordialidade? Na verdade, a impressão que se tem é que Voegelin foi mais bem recebido do que seria de esperar nas universidades por onde andou. Mas, se quisermos encontrar seus livros nas livrarias de Nova York, ou em outras cidades dos Estados Unidos que não sejam universitárias, perderemos nosso tempo. Pouco conhecido no mundo filosófico norte-americanos, os autores que o citam são poucos e reticentes. Autores como MacIntyre, Charles Taylor, Richard Rorty, Robert F. Pippim, John Rawls, W.W.O. Quine parecem nunca ter nele ouvido falar. Estou falando apenas dos Estados Unidos, onde, apesar de tudo, ele criou um grupo de admiradores, interessados, entretanto, mais nos seus estudos históricos e teológicos do que propriamente filosóficos. Na Europa, com exceção de Viena, onde, naturalmente, é conhecido porque trabalhou lá quase dez anos, seu nome é praticamente ignorado.

Não creio que o caso de Voegelin seja idêntico ao de Jaeger. Jaeger era muito conhecido provavelmente muito lido – mas era hostilizado e algumas vezes atacado por autores que não tinham competência para criticá-lo. Voegelin simplesmente não é conhecido, pelo menos não é conhecido na sua grandeza, na sua importância. Um humanista hoje não é conhecido simplesmente porque é um humanista”.

Do livro que inspirou este blog e minha juventude O Humanista. A Ordem na alma do Indivíduo na Sociedade. pp. 129 a 132; 1ª ed. Topbooks. 1996.

Algumas passagens de Mário Vieira de Mello

“A educação no Brasil não visa criar um ethos no homem; seu objetivo era antes e continua a ser o de criar o grande profissional, a figura brilhante, o herói da inteligência, ideal estético que domina de maneira avassaladora o ambiente cultural do país”. p.51.

“O esforço de adaptar o indivíduo ao meio social em que vive leva à formação de um tipo de indivíduo incapaz de julgar por si mesmo o que é justo... incapaz de julgar qualquer coisa por si mesmo. Seus pensamentos serão sempre os pensamentos da sociedade à qual está adaptado. Não poderá haver fracasso maior em matéria educacional”. p.55.

A Idéia de Liberdade

“A idéia de liberdade tem duas histórias. Deriva de um lado da carreira feita pela idéia de igualdade. Temos então o tipo de liberdade que pode ser chamada de externa. É a liberdade que o homem pode ter pelo fato de ser igual a outros homens. Essa espécie de liberdade deve ser considerada externa porque se restringe somente ao que diz respeito ao nosso comportamento externo. É oriunda de uma noção inteiramente – como a igualdade –relacionada com a problemática do Poder. Os homens são iguais e livres a fim de terem o poder de fazer livremente e igualmente as mesmas coisas.

Mas existe também uma idéia de liberdade que não deriva da noção de igualdade, embora derive da idéia de justiça... Mas temos nesse conceito mais complexo de justiça uma idéia que paradoxalmente parece identificar-se com a noção mesma de desigualdade. Existem homens que são justos contrariamente ao que acontece com a maioria deles. Esses homens são igualmente livres; conseguem controlar suas próprias paixões e instintos e desse modo adquirem um certo grau de liberdade. Essa espécie de liberdade não outorga poder sobre as coisas ou outros homens, mas oferece ao homem que a possui uma entrada franca no mundo da cultura.

À liberdade assim constituída só podemos chamar de liberdade interior”. p.98

Do livro um Conceito de uma Educação da Cultura com referência ao Estetismo e à criação de um espírito ético no Brasil. Ed. Paz e Terra, 1986.

Wednesday, May 10, 2006

Independência do conhecimento intuitivo com respeito ao intelectual

Benedetto Croce

O primeiro ponto que precisa ser bem fixado na mente é que o conhecimento intuitivo não necessita de padrões, não necessita apoiar-se em algo; não deve pedir emprestado os olhos de outrem, pois possui os seus próprios, valiosíssimos. E se é indubitável que em muitas intuições conceitos misturados possam ser encontrados, em outras, semelhante mistura não é traço comum, o que prova que isso não é necessário. A impressão de um clarão da Lua retratada por um pintor; o contorno de uma região, delineado por um cartógrafo; um motivo musical, terno ou enérgico; as palavras de uma lírica suspirosa, ou aquelas com as quais pedimos, ordenamos e nos lamentamos na vida ordinária, bem podem ser todos fatos intuitivos sem sombra de reflexões intelectuais. Mas, o que quer que se pense desses exemplos -- e posto ainda se queira e se deva sustentar que a maior parte das intuições do homem civilizado sejam impregnadas de conceitos --, neles há algo de bem diferente, e de mais importante e conclusivo, por se observar. Os conceitos que se encontram misturados e fundidos nas intuições, enquanto nelas estão efetivamente misturados e fundidos, não são mais conceitos, pois perderam independência e autonomia. Foram já conceitos, mas transformaram-se, agora, em simples elementos da intuição. As máximas filosóficas, postas na boca de um personagem de tragédia ou comédia, têm lá sua função, mas não mais de conceitos, e sim, de características daqueles personagens; do mesmo modo, o vermelho numa figura pintada não está como o conceito da cor vermelho dos físicos, mas como elemento caracterizante daquela figura. O todo determina a qualidade das partes. Uma obra de arte pode estar repleta de conceitos filosóficos, pode ainda tê-los em maior abundância e profundidade que uma dissertação filosófica, a qual, por sua vez, poderá ser rica e transbordante de descrições e intuições. Mas, não obstante todos aqueles conceitos, o resultado da obra de arte é uma intuição; e, não obstante todas aquelas intuições, o resultado da dissertação filosófica é um conceito. Os Noivos1 contém muitas observações e distinções de ética, mas nem por isso perde, no seu conjunto, o caráter de simples novela ou de intuição. Do mesmo modo, as anedotas e efusões satíricas que se pode encontrar nos livros de um filósofo como Schopenhauer não retiram daquele livro o caráter de tratado intelectivo. No resultado, no efeito diverso ao qual cada um aponta e que determina e submete todas as partes separadas -- não numa simples parte separada e considerada abstratamente por si --, está a diferença entre uma obra de ciência e uma obra de arte, isto é, entre um ato intelectivo e um ato intuitivo.

Notas:

1 – titulo em português do romance I Promessi Sposi, de AlessandroManzoni.(NT)

Passagem extraída do Cap. I, p. 04, do livro Stetica come Scienza Dell`Espressione e Linguistica Generale. 9ª ed., Bari, Gius. Laterza e Figli, 1950.

Tradução: E.Santiago

The Second Coming

W. B. Yeats

TURNING and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?

Thursday, May 04, 2006

Dialética da inveja

Olavo de Carvalho
Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 2003

A inveja é o mais dissimulado dos sentimentos humanos, não só por ser o mais desprezível mas porque se compõe, em essência, de um conflito insolúvel entre a aversão a si mesmo e o anseio de autovalorização, de tal modo que a alma, dividida, fala para fora com a voz do orgulho e para dentro com a do desprezo, não logrando jamais aquela unidade de intenção e de tom que evidencia a sinceridade.

Que eu saiba, o único invejoso assumido da literatura universal é O Sobrinho de Rameau, de Diderot, personagem caricato demais para ser real. Mesmo O Homem do Subterrâneo de Dostoiévski só se exprime no papel porque acredita que não será lido. A gente confessa ódio, humilhação, medo, ciúme, tristeza, cobiça. Inveja, nunca. A inveja admitida se anularia no ato, transmutando-se em competição franca ou em desistência resignada. A inveja é o único sentimento que se alimenta de sua própria ocultação.

O homem torna-se invejoso quando desiste intimamente dos bens que cobiçava, por acreditar, em segredo, que não os merece. O que lhe dói não é a falta dos bens, mas do mérito. Daí sua compulsão de depreciar esses bens, de destruí-los ou de substituí-los por simulacros miseráveis, fingindo julgá-los mais valiosos que os originais. É precisamente nas dissimulações que a inveja se revela da maneira mais clara.

As formas de dissimulação são muitas, mas a inveja essencial, primordial, tem por objeto os bens espirituais, porque são mais abstratos e impalpáveis, mais aptos a despertar no invejoso aquele sentimento de exclusão irremediável que faz dele, em vida, um condenado do inferno. Riqueza material e poder mundano nunca são tão distantes, tão incompreensíveis, quanto a amizade de Abel com Deus, que leva Caim ao desespero, ou o misterioso dom do gênio criador, que humilha as inteligências medíocres mesmo quando bem sucedidas social e economicamente. Por trás da inveja vulgar há sempre inveja espiritual.

Mas a inveja espiritual muda de motivo conforme os tempos. A época moderna, explica Lionel Trilling em Beyond Culture (1964), "é a primeira em que muitos homens aspiram a altas realizações nas artes e, na sua frustração, formam uma classe despossuída, um proletariado do espírito."

Para novos motivos, novas dissimulações. O "proletariado do espírito" é, como já observava Otto Maria Carpeaux (A Cinza do Purgatório, 1943), a classe revolucionária por excelência. Desde a Revolução Francesa, os movimentos ideológicos de massa sempre recrutaram o grosso de seus líderes da multidão dos semi-intelectuais ressentidos. Afastados do trabalho manual pela instrução que receberam, separados da realização nas letras e nas artes pela sua mediocridade endêmica, que lhes restava? A revolta. Mas uma revolta em nome da inépcia se autodesmoralizaria no ato. O único que a confessou, com candura suicida, foi justamente o "sobrinho de Rameau". Como que advertidos por essa cruel caricatura, os demais notaram que era preciso a camuflagem de um pretexto nobre. Para isso serviram os pobres e oprimidos. A facilidade com que todo revolucionário derrama lágrimas de piedade por eles enquanto luta contra o establishment, passando a oprimi-los tão logo sobe ao poder, só se explica pelo fato de que não era o sofrimento material deles que o comovia, mas apenas o seu próprio sofrimento psíquico. O direito dos pobres é a poção alucinógena com que o intelectual ativista se inebria de ilusões quanto aos motivos da sua conduta. E é o próprio drama interior da inveja espiritual que dá ao seu discurso aquela hipnótica intensidade emocional que W. B. Yeats notava nos apóstolos do pior (v. "The Second Coming" e "The Leaders of the Crowd" em Michael Robartes and The Dancer, 1921). Nenhum sentimento autêntico se expressa com furor comparável ao da encenação histérica.

Por ironia, o que deu origem ao grand guignol das revoluções modernas não foi a exclusão, mas a inclusão: foi quando as portas das atividades culturais superiores se abriram para as massas de classe média e pobre que, fatalmente, o número de frustrados das letras se multiplicou por milhões.

A "rebelião das massas" a que se referia José Ortega y Gasset (La Rebelión de las Masas, 1928) consistia precisamente nisso: não na ascensão dos pobres à cultura superior, mas na concomitante impossibilidade de democratizar o gênio. A inveja resultante gerava ódio aos próprios bens recém-conquistados, que pareciam tanto mais inacessíveis às almas quanto mais democratizados no mundo: daí o clamor geral contra a "cultura de elite", justamente no momento em que ela já não era privilégio da elite.

Ortega, de maneira tão injusta quanto compreensível, foi por isso acusado de elitista. Mas Eric Hoffer, operário elevado por mérito próprio ao nível de grande intelectual, também escreveu páginas penetrantes sobre a psicologia dos ativistas, "pseudo-intelectuais tagarelas e cheios de pose... Vivendo vidas estéreis e inúteis, não possuem autoconfiança e auto-respeito, e anseiam pela ilusão de peso e importância." (The Ordeal of Change, 1952).

Por isso, leitores, não estranhem quando virem, na liderança dos "movimentos sociais", cidadãos de classe média e alta diplomados pelas universidades mais caras, como é o caso aliás do próprio sr. João Pedro Stedile, economista da PUC-RS. Se esses movimentos fossem autenticamente de pobres, eles se contentariam com o atendimento de suas reivindicações nominais: um pedaço de terra, uma casa, ferramentas de trabalho. Mas o vazio no coração do intelectual ativista, o buraco negro da inveja espiritual, é tão profundo quanto o abismo do inferno. Nem o mundo inteiro pode preenchê-lo. Por isso a demanda razoável dos bens mais simples da vida, esperança inicial da massa dos liderados, acaba sempre se ampliando, por iniciativa dos líderes, na exigência louca de uma transformação total da realidade, de uma mutação revolucionária do mundo. E, no caos da revolução, as esperanças dos pobres acabam sempre sacrificadas à glória dos intelectuais ativistas.