Tuesday, May 16, 2006

Algumas passagens de Mário Vieira de Mello - II

Em defesa de Voegelin

“Consideremos uma outra vítima da campanha surda de hostilidade que a cultura vassala do poder move hoje contra o humanismo. Voegelin é descrito nas orelhas de seus livros como um dos maiores historiadores de nossos tempos, como um dos mais profundos e estimulantes do século XX. Entretanto, se passarmos em revista o que vem produzindo a literatura filosófica contemporânea, veremos que são raríssimas as referencias feitas a ele. Em três livros que dão razoavelmente um panorama da produção filosófica de nossos dias e dos debates ocorridos – After MacIntyre, uma coletânea de estudos sobre a obra de Alasdair MacIntyre, Modernism as a philosophical problem, de Robert B. Pippin, e The philosophical discourse of modernity, de Jurgen Habermas – o nome de Voegelin não é nem mesmo mencionado. Mas o desdém que lhe é assim manifestado ele não o retribui. Voegelin era um gentleman. Quem estudar com cuidado sua obra verá que há nela formulações que só poderiam ser interpretadas como uma crítica severa aos Estados Unidos. Mas o modo de apresentação elimina qualquer choque mais direto. Em O cidadão, eu, que já havia citado por inteiro o julgamento mais severo que sobre os Estados Unidos pronunciou Voegelin, aventei a hipótese de que havia sido a preocupação de não ofender o amor próprio dos americanos o motivo pelo qual fora retardada, por cerca de dez anos, a publicação do texto em que ele expressara aquele julgamento, apresentado de modo propício a poupar suscetibilidades. Agora, em palavras captadas por Elias Sandoz, em entrevista com Voegelin que deu origem ao livro Reflexões Autobiográficas, minha hipótese parece substancialmente confirmada. Vale a pena cita-las: “No que diz respeito à institucionalização da ordem existencial, a sociedade americana parece oferecer algumas vantagens quando comparada a outras sociedades nacionais do mundo ocidental. Mas preciso admitir, antes de mais nada, que sou suspeito nesta matéria porque, afinal de contas, tive de fugir, para não morrer, da cena política da Europa Central e fui recebido generosamente na América. Isto naturalmente deu margem a preconceitos. Espero, entretanto, que as observações que farei em seguida não estejam excessivamente marcadas por eles”. Esse prejudice foi uma coisa que sempre me pareceu inibir o julgamento de Voegelin sobre os Estados Unidos. A posição filosófica de Voegelin é a de uma crítica radical, sem compromissos, à cultura contemporânea em todas as formas pelas quais ela se manifesta. A cultura como expressão suprema da existência humana ia desaparecendo e o seu lugar era tomado pela ideologia. A sua critica visava a cultura do mundo ocidental como um todo, mas havia coisas em seus textos que se referiam claramente à realidade da sociedade americana – como quando diz, por exemplo, nas mesmas Reflexões Autobiográficas citadas acima: “Com relação ao clima dominante nas ciências sociais, o filosofo na América se encontra em situação idêntica à de Soljenitzin na União de Escritores Soviéticos – a diferença importante residindo, naturalmente, no fato de que nossa União de Escritores Soviéticos não dispõe de poder governamental para eliminar scholars. Por isso, quando em certas ocasiões Voegelin parece excetuar os Estados Unidos do rigor de suas críticas, deveríamos, creio eu, admirar não a exatidão do filósofo mas a gratidão e as boas maneiras do gentleman que ele era.

E como seria possível excetuar os Estados Unidos da sua crítica se sua bête noire era e sempre havia sido a ideologia? A sociedade norte-americana não era nem marxista, nem fascista, nem nazista, mas era indubitavelmente uma sociedade organizada em torno das estruturas de poder. A obsessão do poder é uma ideologia tão deformadora quanto as ideologias marxista, fascista ou nazista. Voegelin, que incluiu nas suas análises da ideologia a idéia de poder sob a forma de “instrumentalização das paixões”, assim o fez para colocar a sociedade norte-americana sob a mira de sua análise. Através desse processo, o legislador – o legislador norte-americano – introduz o poder no mais íntimo da alma humana, fazendo-a agir não de acordo com seus instintos e emoções naturais, não de acordo com o ordenamento ético promovido pela atividade do princípio racional, mas de acordo com um interesse determinado, o interesse esclarecido em virtude do qual uma maior soma de poder lhe será conferida. O legislador norte-americano afasta com impaciência a idéia de uma ordem humanista na alma do indivíduo; o de que ele precisa é que esta alma esteja em estado de desordem para que possa ser instrumentalizada.

O anti-humanismo é, assim, se nossas deduções são corretas, um ingrediente essencial da estrutura da sociedade norte-americana; não é simplesmente o resultado da influência de atitudes intelectuais como as de um Foucault ou de um Heidegger, mas qualquer coisa sobre a qual se alicerçam realmente as estruturas sociais da nação. Como, pois, poder-se-ia conceber que um filósofo tão arraigadamente humanista como Voegelin tivesse um acolhimento que ultrapassasse os limites da cordialidade? Na verdade, a impressão que se tem é que Voegelin foi mais bem recebido do que seria de esperar nas universidades por onde andou. Mas, se quisermos encontrar seus livros nas livrarias de Nova York, ou em outras cidades dos Estados Unidos que não sejam universitárias, perderemos nosso tempo. Pouco conhecido no mundo filosófico norte-americanos, os autores que o citam são poucos e reticentes. Autores como MacIntyre, Charles Taylor, Richard Rorty, Robert F. Pippim, John Rawls, W.W.O. Quine parecem nunca ter nele ouvido falar. Estou falando apenas dos Estados Unidos, onde, apesar de tudo, ele criou um grupo de admiradores, interessados, entretanto, mais nos seus estudos históricos e teológicos do que propriamente filosóficos. Na Europa, com exceção de Viena, onde, naturalmente, é conhecido porque trabalhou lá quase dez anos, seu nome é praticamente ignorado.

Não creio que o caso de Voegelin seja idêntico ao de Jaeger. Jaeger era muito conhecido provavelmente muito lido – mas era hostilizado e algumas vezes atacado por autores que não tinham competência para criticá-lo. Voegelin simplesmente não é conhecido, pelo menos não é conhecido na sua grandeza, na sua importância. Um humanista hoje não é conhecido simplesmente porque é um humanista”.

Do livro que inspirou este blog e minha juventude O Humanista. A Ordem na alma do Indivíduo na Sociedade. pp. 129 a 132; 1ª ed. Topbooks. 1996.

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