Wednesday, May 10, 2006

Independência do conhecimento intuitivo com respeito ao intelectual

Benedetto Croce

O primeiro ponto que precisa ser bem fixado na mente é que o conhecimento intuitivo não necessita de padrões, não necessita apoiar-se em algo; não deve pedir emprestado os olhos de outrem, pois possui os seus próprios, valiosíssimos. E se é indubitável que em muitas intuições conceitos misturados possam ser encontrados, em outras, semelhante mistura não é traço comum, o que prova que isso não é necessário. A impressão de um clarão da Lua retratada por um pintor; o contorno de uma região, delineado por um cartógrafo; um motivo musical, terno ou enérgico; as palavras de uma lírica suspirosa, ou aquelas com as quais pedimos, ordenamos e nos lamentamos na vida ordinária, bem podem ser todos fatos intuitivos sem sombra de reflexões intelectuais. Mas, o que quer que se pense desses exemplos -- e posto ainda se queira e se deva sustentar que a maior parte das intuições do homem civilizado sejam impregnadas de conceitos --, neles há algo de bem diferente, e de mais importante e conclusivo, por se observar. Os conceitos que se encontram misturados e fundidos nas intuições, enquanto nelas estão efetivamente misturados e fundidos, não são mais conceitos, pois perderam independência e autonomia. Foram já conceitos, mas transformaram-se, agora, em simples elementos da intuição. As máximas filosóficas, postas na boca de um personagem de tragédia ou comédia, têm lá sua função, mas não mais de conceitos, e sim, de características daqueles personagens; do mesmo modo, o vermelho numa figura pintada não está como o conceito da cor vermelho dos físicos, mas como elemento caracterizante daquela figura. O todo determina a qualidade das partes. Uma obra de arte pode estar repleta de conceitos filosóficos, pode ainda tê-los em maior abundância e profundidade que uma dissertação filosófica, a qual, por sua vez, poderá ser rica e transbordante de descrições e intuições. Mas, não obstante todos aqueles conceitos, o resultado da obra de arte é uma intuição; e, não obstante todas aquelas intuições, o resultado da dissertação filosófica é um conceito. Os Noivos1 contém muitas observações e distinções de ética, mas nem por isso perde, no seu conjunto, o caráter de simples novela ou de intuição. Do mesmo modo, as anedotas e efusões satíricas que se pode encontrar nos livros de um filósofo como Schopenhauer não retiram daquele livro o caráter de tratado intelectivo. No resultado, no efeito diverso ao qual cada um aponta e que determina e submete todas as partes separadas -- não numa simples parte separada e considerada abstratamente por si --, está a diferença entre uma obra de ciência e uma obra de arte, isto é, entre um ato intelectivo e um ato intuitivo.

Notas:

1 – titulo em português do romance I Promessi Sposi, de AlessandroManzoni.(NT)

Passagem extraída do Cap. I, p. 04, do livro Stetica come Scienza Dell`Espressione e Linguistica Generale. 9ª ed., Bari, Gius. Laterza e Figli, 1950.

Tradução: E.Santiago

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