Friday, March 31, 2006

Pinturas Favoritas III












Crucificação

1954
Óleo sobre tela. 194.5 x 124 cm.
MOMA. Nueva York
Aut. Salvador Dalí

Monday, March 27, 2006

HEGEL: A CHAVE PARA ENTENDER A EXISTÊNCIA MODERNA

Eric Voegelin

[A seguinte passagem revela o intenso ressentimento de Hegel, assim como sua causa:

Todo homem não passa de um elo oculto na cadeia de necessidade absoluta pela qual o mundo aperfeiçoa a si mesmo ( sich fortbildet ). O homem comum pode elevar-se ao domínio ( Herrschaft ) sobre uma extensão sensível dessa cadeia apenas se souber a direção na qual a grande necessidade quer mover- se e se aprender, a partir desse conhecimento, a pronunciar as palavras mágicas ( die Zauberworte ) que evocarão sua forma ( Gestalt ).

{ Fortsetzung des “Systems der Sittlichkeit ,” (1804-1806, escritos enquanto Hegel trabalhava na Phaenomenologie ) Dokumente zu Hegels Entwicklung , Stuttgart, 1936, 314-325, at 324.}]

Essa passagem é a chave para o entendimento da existência moderna. O homem tornou-se um nada, ele não possui realidade por si mesmo; o homem é uma partícula cega na marcha do mundo, o qual possui o monopólio da realidade e do sentido verdadeiros. Para elevar-se do nada a algo, a partícula cega deve tornar-se uma partícula capaz de enxergar. Mas, mesmo que tenha adquirido visão, a partícula não vê senão a direção na qual o processo está se movendo, quer este seja visto ou não pela partícula.

Todavia, para Hegel algo importante foi obtido: o nada que se ergueu a algo tornou-se, se não um homem, pelo menos um feiticeiro que, embora incapaz de evocar a realidade da história, é capaz de evocar pelo menos sua forma. Quase hesito em continuar – o espetáculo de um niilista despindo-se por completo é desconcertante. Pois Hegel revela tantas vezes que ser um homem não é suficiente para ele; e como Hegel não pode ser ele mesmo o Senhor divino da história, ele irá alcançar o Herrschaft como o feiticeiro que evocará uma imagem da história – uma forma, um fantasma – destinada a eclipsar a história da criação Divina. O projeto imaginativo da história encaixa-se no padrão da existência moderna como instrumento de poder do prestidigitador.

Hegel conclui sua reflexão com a afirmação:

“Esse conhecimento -- o qual pretende incluir em si mesmo todo sofrimento e o conflito que por milhares de anos têm governado o mundo e todas as feições de sua formação ( Ausbildung ), e ao mesmo tempo elevar-se acima do conflito --, esse conhecimento só a filosofia pode fornecer.” (at 325)

“Esse conhecimento”, lembramos, é o conhecimento a partir do qual seu possuidor pode aprender as palavras mágicas que evocarão a forma das coisas que estão por vir. A respeito do seu conteúdo, “Esse conhecimento” deve ser o livro capaz de abarcar todo o sofrimento e conflito na marcha do mundo, pois apenas sendo um livro todo-abarcante pode o possuidor d’“esse conhecimento” elevar-se acima do conflito e do sofrimento mundanos. O tema da redenção e reconciliação é retomado. O conhecimento que tudo engloba deve ser alcançado para dar fim à marcha do mundo, dar fim a esse pesadelo de conflito e sofrimento, e para inaugurar a era da reconciliação.

Na verdade, uma forma é evocada no programa de Hegel: a forma do Cristo que conduz nos ombros o conflito e o sofrimento do mundo e, desse modo, torna-se seu redentor. Esse conhecimento redentor é o conhecimento que só a filosofia pode dar. A “Filosofia” torna-se o grimoire do mágico que evocará, para todos, a forma e a reconciliação que não pode alcançar para si na realidade de sua existência.

Tradução: E. Santiago

CW VOL 12
On Hegel: A Study in Sorcery
§ II, pp 221-222.

Thursday, March 16, 2006

Eunucos Espirituais e o Páthos da Ciência

Eric Voegelin

(1) A transferência para a existência do phátos de autonomia e autoconfiança que estimula o progresso da ciência se expressa concretamente no crescimento da crença de que a existência humana pode ser orientada de modo absoluto através da verdade da ciência. Se essa idéia é legítima, então torna-se desnecessário cultivar o conhecimento para além da ciência. Como conseqüência, a preocupação com a ciência e a posse do saber científico servem para legitimar a ignorância no que diz respeito a todos os problemas que se situam acima da ciência dos fenômenos. A disseminação dessa crença permitiu que, na civilização ocidental, um progresso cientifico esplêndido ocorresse paralelamente a um execrável progresso da ignorância no que diz respeito aos problemas existenciais mais importantes.

(2) Por si mesma, a ignorância em massa já seria ruim o bastante. Ainda assim, a mera ignorância poderia ser reparada pelo estudo. A ignorância cientificista torna-se um desastre para a civilização, pois o verdadeiro ordenamento da existência não pode ser alcançado mediante a aquisição de conhecimento no sentido fenomenal. Ele requer a formação da personalidade em um processo educacional, e esse processo requer instituições.

Uma vez que o páthos cientifico tenha penetrado nas instituições educacionais de uma sociedade, ele torna-se uma força que dificilmente pode ser quebrada, se é que pode. O problema, portanto, já não é mais a mera ignorância. Se a crença no ordenamento auto-suficiente da existência através da ciência está entrincheirada na sociedade, ela torna-se uma força que, com vigor, impede o cultivo da substância humana e corrói ainda mais os elementos sobreviventes da tradição cultural.

Além disso, a cada homem é dado diferentemente o cultivo da substância (dado no sentido Paulino, de dádiva; dotado de charismata espiritual). Os portadores do páthos da ciência serão homens carentes dessa dádiva, e a impregnação da sociedade com o páthos cientifico cria um ambiente que favorece o sucesso social de tipos humanos deficientes. Por conseguinte, o progresso da ciência e o crescimento de fatores racional-utilitários são acompanhados pela reestratificação da sociedade, a qual, por sua vez, parece ter chamado pouca atenção até agora, uma vez que não pode ser expressa em termos de classes sociais. A reestratificação por meio do prestígio social e do sucesso dos tipos deficientes deve ser expressa em termos de substância humana. Poderíamos utilizar o termo eunuquismo espiritual para designar os traços de personalidade que fazem de um homem provável vítima do páthos cientifico, assim como para designar os traços que um sociedade adquire quando esses tipos humanos ganham ascendência social...

(3) Outro traço relacionado à transferência do páthos é o aumento do diletantismo agressivo em assuntos filosóficos. Novamente, essa não é uma questão de simples ignorância ou diletantismo que pode ocorrer em qualquer época. O mais novo e perigoso elemento é a prontidão do diletante em impor sua ignorância como padrão para os outros. A resposta de Clarke – “Eu não entendo” – à exposição de Leibniz sobre os problemas do tempo e do espaço é o sintoma sinistro dessa nova atitude. Ele realmente não entende – e isso resolve a questão a seu favor. O que um diletante cientifico não pode entender não deve ser proposto na discussão de um problema... O que Newton tinha para dizer nas suas definições do espaço afetava a formação das idéias políticas incomensuravelmente. O êxito social da teoria newtoniana do espaço absoluto é o primeiro grande exemplo das teorias diletantes bem sucedidas, promovidas ou pelos próprios cientistas, ou – após a transferência em grande escala do páthos da ciência – pelos grandes eunucos espirituais do século XIX. Sem a impressão de prestígio dada pelo cientificismo, esses grandes escândalos intelectuais, como o sucesso do positivismo, do evolucionismo darwinista e do marxismo, seriam impensáveis.

Monday, March 13, 2006

A IDÉIA DE FILOSOFIA EM ARISTÓTELES

Xavier Zubiri

Do livro Naturaleza, Historia, Dios

O filosofar existiu na Grécia, naturalmente, muito antes do século de Platão e de Aristóteles. O vocábulo já aparece em Heródoto usado como forma verbal (philosopheîn) em uma passagem que encerra todos os elementos essenciais da questão. Heródoto põe na boca de Creso estas palavras dirigidas a Sólon: “Chegaram até nós muitas notícias tuas, tanto por tua sabedoria (sophíe), quanto por tuas viagens, e de que, movido pelo gosto do saber, (hos philosophéon) percorreste muitos países para examiná-los (theoríes heíneken)” (1, 30). Aqui, intimamente associados, aparecem os três termos de sophía, theoría e philosophía

A palavra sophía é o abstrato do adjetivo sophós, que significou “entendido em algo”. Esse algo podia ser o mais variado: uma habilidade manual, o governo das cidades, a arte e, sobretudo, o último do mundo e da vida. Mas o essencial é que o substantivo sophía denota muito mais que o conteúdo ao qual se aplica, um atributo do sophós mesmo; sophía é uma qualidade, um modo de ser do homem, algo que o faz ser um artífice, um artista ou um “sábio”. Há, pois, uma clara distinção entre a sophía como um modo que o homem possui para enfrentar as coisas, e a sophía enquanto qualificada pelas zonas diversas com que se enfrenta*. Essas zonas podem ser, conforme dissemos, muito variadas; para o nosso problema, a que nos interessa especialmente é a zona das ultimidades do mundo e da vida. A sophía é um saber acerca dessas ultimidades. Mas, como propriedade do sophós, esssa sophía pode possuir e possui, efetivamente, matizes diversos. Assim, no Oriente, a sophía acentuou, sobretudo, o caráter operativo do saber. Já na Grécia, foi adotando matizes cada vez mais sensivelmente intelectuais. Na Jônia, a sophía é o modo de ser não de quem faz, e sim de quem sabe fazer; daquele que conhece como se deve trabalhar ou governar, ou como se produzem os eventos dos deuses e do mundo. A sophía foi associando-se cada vez mais intimamente com o puro exame do mundo, independentemente das ações humanas: “para examiná-los” é por que atravessa Sólon muitos países, e por isso Heródoto qualificou-o de sábio. A sophía, como theoría, foi a grande criação da Grécia, algo que afeta o modo mental de situar-se ante as coisas, mais que à zona de objetos sobre a qual recai. Essa theoría grega desenvolveu-se desde a simples consideração teorética dos jônicos até a sua articulação racional em epistéme. E, ao longo desse desenvolvimento intelectual, transcorre também o desenvolvimento de sua expressão literária: enquanto a sophía não passava de um simples exame do mundo em seu conjunto, algo muito próximo à sabedoria religiosa expressou-se como essa em forma poética; quando começou a revestir o caráter de conhecimento racional introduziu-se a prosa na filosofia.

Pois bem: essa distinção entre o tipo de atitude mental e as zonas que ela abarca deve estender-se também a esse modo especial de sophía, que se chamou philosophía. Nela há de se distinguir também, por um lado, as distintas zonas de realidade que abarca e, por outro, o tipo de saber que a constitui.

Primeiramente, o saber filosófico vai descobrindo na Grécia zonas de realidade distintas, com peculiaridades próprias; vai iluminando regiões do universo cada vez mais insuspeitadas e fazendo delas objeto seu. Num princípio, o saber filosófico ocupou-se preferencialmente dos deuses, e viu no mundo uma espécie de prolongamento genético desses deuses. Junto aos deuses, os jônicos descobrem a natureza como algo próprio. Mais tarde, Parmênides e Heráclito, por sua vez, descobrem nela essa misteriosa e sutil qualidade do “ser”, pela qual dizemos que essa natureza é a realidade.[1] Os físicos sicilianos e atenienses encontram a realidade da natureza na zona oculta dos “elementos”. Com os pitagóricos aparecem, junto à natureza, os objetos matemáticos, cuja realidade é distinta da dos seres naturais. A idéia de realidade sofre, então, uma modificação e uma ampliação essenciais. Os sofistas e Sócrates põem ante os olhos de seus contemporâneos a realidade autônoma do orbe vital, tanto político quanto ético: o discurso, a virtude e o bem. Com Platão, entre os deuses e toda essa realidade física, matemática e humana, aparecem as Idéias, o mundo das essências ideais.

Mas, junto a esse desenvolvimento que afeta a amplitude de seu campo está outro, muito mais obscuro, que afeta o tipo de saber constitutivo da filosofia. É mister chamar a atenção sobre ele, porque é algo que quase sempre -- e o quase o ponho por prudência – tem sido preterido: ante os olhos dos homens não apenas se ampliaram as zonas de realidade, modificando-se assim o sentido que a realidade possui, mas também foram modificando-se, simultaneamente, a estrutura mesma do saber filosófico enquanto forma de saber. A “definição” da filosofia por seu conteúdo é coisa distinta da sua definição como forma de saber.

Já o indicávamos antes. A sophía, como atitude mental, desenvolveu-se no Oriente por sua dimensão operativa. Na Grécia, por outro lado, adscreveu-se ao mero conhecimento. Ainda em sua acepção mais corrente, o experto (empeirós), o técnico (tekhnítes) e o dirigente da vida humana (phrónimos), significam sempre homens que têm a qualidade de saber fazer algo. É o que Aristóteles expressava ao dizer que com esses três modos de saber (empeiría, tékhne, phrónesis) o homem aletheúei, vocábulo de difícil tradução significando, talvez, “descobre a verdade”. O saber vai dirigido, pois, ao descobrimento do sabido. E em sentido lato chamou-se a todos esses homens sophoí. Junto a esses três modos de saber, a sophía propriamente dita, em sentido estrito, é para um grego o modo supremo de descobrir a verdade. Enquanto naqueles três modos o homem sabe das coisas em/e/para seu fazer com elas, na sophía vai-se ao descobrimento da verdade por si - mesma, vai-se à teoria. E este tipo de sophía, em que não se busca nada senão a sophia mesma, é o que se chamou “o gosto por saber”, philosophía, frente à philokalía, o gosto pela beleza. Em Heródoto, a idéia de filosofia aparece, conforme vimos, em forma ainda participativa; como substantivo só começou a ser usada justamente no circulo socrático para indicar a qualidade, o habito mental desse novo modo de sophía. O tipo de vida intelectual de quem possui essa qualidade foi denominado bios theoretikós, vida teorética.

A sophía como atitude mental começou com os jônicos, sendo, como havíamos dito, o que vagamente não se chamou senão theoría, exame ou estudo da natureza por si mesma, um esforço dirigido à verdade pela verdade. Imediatamente depois, esse saber filosófico, que é a theoriu, adotou em Parmênides e Heráclito a forma de uma espécie de visão intelectual do mundo, noûs. Mais tarde em Atenas, finalmente, essa visão intelectual do mundo desdobrou-se em una explicação racional dele, em uma epistéme. A filosofia, pois, lançada pelo leito puramente intelectivo, começou por ser simples theoria, foi depois visão intelectual das coisas e terminou sendo uma ciência. E, à medida que se foram iluminando novas zonas de realidade, criavam-se novas formas de saber racional. Recordemos também, para ser completo, que com os sofistas a filosofia foi a cultura intelectual, a paideía.

Assim, no tempo de Platão e de Aristóteles tem-se uma multidão de ciências filosóficas da realidade. Isso fez com que, para Aristóteles, a palavra filosofia fosse, mais que o nome de uma ciência, o título de um problema. O que há em todas essas “filosofias” que justifique seus nomes? Por isso chamou Aristóteles a filosofia zetouméne epistéme, a ciência que se busca. A formula é equívoca e já compreendemos agora por que. Porque não se sabe se alude à primeira ou à segunda das duas dimensões da filosofia: ao seu conteúdo ou ao tipo de saber que a constitui. Creio essencial chamar a atenção sobre esse ponto.

O que vai envolto primeiro na fórmula aristotélica não é o esforço por descobrir o objeto próprio da filosofia e, logo, a existência desta. Mas antes: Aristóteles a dá por suposta, ante o fato de que seus antepassados ocuparam-se em criar, e criaram, efetivamente, saberes filosóficos. Aristóteles não busca, pois, primariamente a filosofia. O que Aristóteles busca primariamente é a forma única sob a qual pode existir, segundo ele, o saber filosófico com pleno rigor intelectual. Essa é uma questão distinta da de seu objeto e anterior a ela. Aristóteles parte da idéia de que a filosofia há de ser um saber teorético. Sua busca está voltada para o caráter racional que há de adotar esse saber teorético que a filosofia já vinha sendo. O que busca formalmente é, pois, sua forma racional. Será possível fazer da filosofia uma epistéme? Uma forma especial, um tipo de filosofia: a filosofia como epistéme, e não a existência de toda possível filosofia, é o que constitui o termo primário da busca aristotélica. Como diria Hegel, trata de elevar a sofia ao nível de ciência. Que a idéia e até a pretensão estavam já parcialmente em marcha antes de Aristóteles é um fato inegável, mas Aristóteles encontra justificada sua preocupação ante a imensa variedade de zonas que a epistéme filosófica abarcava em seu tempo. Na realidade, o que havia era muitas ciências filosóficas, nas quais a única coisa nas quais o qu lhes dava unidade era aa que lhes dava unidade era o adjetivo “filosóficas”. Mas, à medida que seu conteúdo se enriquecia, o sentido desse adjetivo foi tornando-se cada vez mais turvo e obscuro. Que há, pois, em todas essas ciências que justifique seu epíteto de filosóficas? No fundo, Aristóteles trata de fazer-nos ver que entre tantas filosofias o filosófico de todas elas, a filosofia, foi ocultando sua essência atrás da floração exuberante dos conhecimentos filosóficos. Se pudéssemos saber com rigor o que é o filosófico em todas essas filosofias, teríamos descoberto algo que seria uma filosofia de tipo novo, de tipo superior às existentes até então; uma filosofia que não seria um saber filosófico acerca de um objeto mais, de uma nova zona do mundo, mas sim que seria a filosofia de todo saber filosófico em quanto tal. Por isso, também programaticamente, chamou-a Aristóteles filosofia por excelência, o saber filosófico em primeira linha, o saber filosófico propriamente dito, ou como disse “filosofia primeira”. Frente a ela, as filosofias de seu tempo seriam filosofias mais ou menos “regionais”, como se dizia há alguns anos. Aristóteles chamava-as filosofias segundas.

E o que Aristóteles encontra de problemático na idéia mesma dessa filosofia primeira? Antes de tudo, dizia, o tipo mesmo de saber que proporciona. Desde Parmênides tinha-se a impressão de que o saber filosófico dirigia-se em direção ao mais real da realidade. Mas essa concepção não passou, a rigor, de ser uma vaga perspectiva intelectual. Foi uma intuição apenas, não um conceito. E por isso o desdobrar da filosofía, desde Parménides a Aristóteles, acha-se caracterizado muito mais pelo descobrimento progressivo de distintas zonas de realidade que por uma elaboração da idéia do saber propriamente filosófico enquanto forma de saber.

As muitas filosofias haviam já adotado essa forma de saber que se chamou epistéme: uma explicação racional da necessidade e da estrutura interna da realidade. Aquela vaga intuição da realidade adotou a forma de um saber científico. Mas o que era a epistéme vinha qualificado muito mais pelos conhecimentos que subministrava do que pela forma mental que a constituía. Pois bem: Aristóteles, seguindo a pista de Platão, pretende que esse caráter científico afete também à estrutura mesma do filosófico enquanto filosófico. O filosófico de todas as ciências filosóficas há de ter, enquanto filosófico, caráter científico. Esse é o ponto de partida da busca aristotélica.

Aristóteles, pois, tem de plantear-se, antes de tudo, a questão de saber em que consiste o caráter do saber filosófico como ciência. Todas essas ciências filosóficas partem de uns primeiros pressupostos acerca da estrutura das coisas reais que estudam. Mas, para ditas ciências, esses princípios das coisas são tão-somente o começo de seu saber. Com elas explicam as coisas, mas os princípios mesmos não são objetos de sua inquisição. O filosófico do saber cientifico como forma de saber consistirá, pois, antes de tudo, em converter esses princípios particulares em objeto de esclarecimento. Com o qual as coisas mesmas ficam envoltas na filosofia. Aristóteles teve, então, a genial idéia de adscrever esses princípios à visão intelectual, ao noûs de que falou Parmênides: essa visão intelectual das coisas é agora concretamente uma visão de seus princípios. Mas isso não basta. É mister que essa visão seja algo mais; faz falta que se desdobre e articule em forma de explicação racional. Se isso fosse possível, teríamos uma ciência que, diferente das demais, buscaria seus próprios princípios e mover-se-ia em sua interna intelecção. A presença do noûs, da visão intelectual na epistéme, é o que dá a essa seu caráter propriamente filosófico; é o filosófico da ciência enquanto ciência. Caso se queira, é uma ciência que não só usa de princípios, mas também que se move internamente em sua íntima justificação: por isso, noûs com epistéme era como chamava Aristóteles a sophía.

Agora, se não fosse mais que isso, a ciência filosófica seria, no máximo, uma teoria das filosofias segundas. Nada mais distante da mente de Aristóteles. Para o estagirita, como para todo bom grego, toda ciência há de ter um objeto real e uns princípios próprios. Logo, essa ciência dos princípios de todas as demais ciências há de apoiar-se, caso queira existir, em algo real. É mister que essa inquisição de todos os princípios das coisas apóie-se, por sua vez, em princípios reais dessas, os quais, caso existam, serão não princípios particulares, mas sim supremos, princípios dos princípios, princípios absolutos ( prota).

Assim, o esforço para construir uma ciência filosófica o leva, em conseqüência (e apenas em conseqüência), a um segundo esforço, a um esforço para encontrar na realidade um objeto que seja próprio a essa. A genialidade de Aristóteles nesse ponto estribou-se em não pretender que o objeto próprio da filosofia fosse uma zona especial da realidade[2] como o foi ainda para Platão: a filosofia há de abarcar a realidade inteira. Seu objeto há de determinar-se, pois, de modo diferente do que fazem as filosofias segundas. Enquanto essas ciências filosóficas estudam cada uma das distintas zonas da realidade, isto é, os distintos modos de ser reais que as coisas possuem, a filosofia primeira estudará a realidade enquanto tal. Do ponto de vista do seu objeto, o filosófico de todas as ciências filosóficas encontra-se justamente no estudar os distintos modos de realidade das coisas. É claro, então, que o real enquanto real constituirá o caráter do filosófico enquanto filosófico.

E aqui convergem os dois esforços da busca aristotélica: a filosofia propriamente dita somente será possível como ciência se a realidade do real tiver uma estrutura captável pela razão, se tiver uns primeiros princípios reais próprios, princípios não das coisas tais como são (hos estín) -- como pretendiam os físicos que especularam sobre os elementos --, e sim princípios da realidade enquanto tal (ón hei ón). Dito na fórmula aristotélica: a realidade enquanto tal tem uma estrutura fundamental, e a filosofia como ciência consistirá na aquisição dessas primariedades do ser, como dirá esplendidamente, muitos séculos depois, Duns Scot.

O descobrimento da filosofia primeira como ciência da realidade enquanto tal só foi possível para Aristóteles como término do intento de dar estrutura racional ao saber filosófico. O desdobramento desse intento é o que o levou a descobrir a realidade enquanto tal. Isso que é importante sublinhar.

O essencial é, pois, que com Aristóteles temos não a filosofia enquanto tal, e sim uma forma determinada de filosofia: a filosofia como ciência. Há outras possibilidades: por um lado, a filosofia, o Veda, foi no Oriente outra coisa -- um saber operativo. Na Grécia, depois de Aristóteles, a filosofia foi também algo distinto. E na Europa pós-clássica a filosofia como tal revestiu, algumas vezes, formas mentais distintas.

* Havia um erro de transcrição na fonte – achada na web -- que utilizei para essa tradução, por isso esse período está tão confuso e com o aspecto de incompleto. NT.

Notas:

[1] A rigor, os jônicos descobrem não a idéia de Natureza, e sim a Natureza mesma; Parmênides descobre o ser, mais que sua idéia.

[2] É supérfluo indicar que, sem dúvida, a relação do objeto da filosofia primeira com o Théos constitui ainda um grave problema para a interpretação da metafísica aristotélica.

Tradução: E. Santiago

Sunday, March 05, 2006

Le cimetière marin - Paul Valéry







Rainer Maria Rilke e Paul Valéry


Ce toit tranquille, où marchent des colombes,
Entre les pins palpite, entre les tombes;
Midi le juste y compose de feux
La mer, la mer, toujours recommencee
O récompense après une pensée
Qu'un long regard sur le calme des dieux!

Quel pur travail de fins éclairs consume
Maint diamant d'imperceptible écume,
Et quelle paix semble se concevoir!
Quand sur l'abîme un soleil se repose,
Ouvrages purs d'une éternelle cause,
Le temps scintille et le songe est savoir.

Stable trésor, temple simple à Minerve,
Masse de calme, et visible réserve,
Eau sourcilleuse, Oeil qui gardes en toi
Tant de sommeil sous une voile de flamme,
O mon silence! . . . Édifice dans l'ame,
Mais comble d'or aux mille tuiles, Toit!

Temple du Temps, qu'un seul soupir résume,
À ce point pur je monte et m'accoutume,
Tout entouré de mon regard marin;
Et comme aux dieux mon offrande suprême,
La scintillation sereine sème
Sur l'altitude un dédain souverain.

Comme le fruit se fond en jouissance,
Comme en délice il change son absence
Dans une bouche où sa forme se meurt,
Je hume ici ma future fumée,
Et le ciel chante à l'âme consumée
Le changement des rives en rumeur.

Beau ciel, vrai ciel, regarde-moi qui change!
Après tant d'orgueil, après tant d'étrange
Oisiveté, mais pleine de pouvoir,
Je m'abandonne à ce brillant espace,
Sur les maisons des morts mon ombre passe
Qui m'apprivoise à son frêle mouvoir.

L'âme exposée aux torches du solstice,
Je te soutiens, admirable justice
De la lumière aux armes sans pitié!
Je te tends pure à ta place première,
Regarde-toi! . . . Mais rendre la lumière
Suppose d'ombre une morne moitié.

O pour moi seul, à moi seul, en moi-même,
Auprès d'un coeur, aux sources du poème,
Entre le vide et l'événement pur,
J'attends l'écho de ma grandeur interne,
Amère, sombre, et sonore citerne,
Sonnant dans l'âme un creux toujours futur!

Sais-tu, fausse captive des feuillages,
Golfe mangeur de ces maigres grillages,
Sur mes yeux clos, secrets éblouissants,
Quel corps me traîne à sa fin paresseuse,
Quel front l'attire à cette terre osseuse?
Une étincelle y pense à mes absents.

Fermé, sacré, plein d'un feu sans matière,
Fragment terrestre offert à la lumière,
Ce lieu me plaît, dominé de flambeaux,
Composé d'or, de pierre et d'arbres sombres,
Où tant de marbre est tremblant sur tant d'ombres;
La mer fidèle y dort sur mes tombeaux!

Chienne splendide, écarte l'idolâtre!
Quand solitaire au sourire de pâtre,
Je pais longtemps, moutons mystérieux,
Le blanc troupeau de mes tranquilles tombes,
Éloignes-en les prudentes colombes,
Les songes vains, les anges curieux!

Ici venu, l'avenir est paresse.
L'insecte net gratte la sécheresse;
Tout est brûlé, défait, reçu dans l'air
A je ne sais quelle sévère essence . . .
La vie est vaste, étant ivre d'absence,
Et l'amertume est douce, et l'esprit clair.

Les morts cachés sont bien dans cette terre
Qui les réchauffe et sèche leur mystère.
Midi là-haut, Midi sans mouvement
En soi se pense et convient à soi-même
Tête complète et parfait diadème,
Je suis en toi le secret changement.

Tu n'as que moi pour contenir tes craintes!
Mes repentirs, mes doutes, mes contraintes
Sont le défaut de ton grand diamant! . . .
Mais dans leur nuit toute lourde de marbres,
Un peuple vague aux racines des arbres
A pris déjà ton parti lentement.

Ils ont fondu dans une absence épaisse,
L'argile rouge a bu la blanche espèce,
Le don de vivre a passé dans les fleurs!
Où sont des morts les phrases familières,
L'art personnel, les âmes singulières?
La larve file où se formaient les pleurs.

Les cris aigus des filles chatouillées,
Les yeux, les dents, les paupières mouillées,
Le sein charmant qui joue avec le feu,
Le sang qui brille aux lèvres qui se rendent,
Les derniers dons, les doigts qui les défendent,
Tout va sous terre et rentre dans le jeu!

Et vous, grande âme, espérez-vous un songe
Qui n'aura plus ces couleurs de mensonge
Qu'aux yeux de chair l'onde et l'or font ici?
Chanterez-vous quand serez vaporeuse?
Allez! Tout fuit! Ma présence est poreuse,
La sainte impatience meurt aussi!

Maigre immortalité noire et dorée,
Consolatrice affreusement laurée,
Qui de la mort fais un sein maternel,
Le beau mensonge et la pieuse ruse!
Qui ne connaît, et qui ne les refuse,
Ce crâne vide et ce rire éternel!

Pères profonds, têtes inhabitées,
Qui sous le poids de tant de pelletées,
Êtes la terre et confondez nos pas,
Le vrai rongeur, le ver irréfutable
N'est point pour vous qui dormez sous la table,
Il vit de vie, il ne me quitte pas!

Amour, peut-être, ou de moi-même haine?
Sa dent secrète est de moi si prochaine
Que tous les noms lui peuvent convenir!
Qu'importe! Il voit, il veut, il songe, il touche!
Ma chair lui plaît, et jusque sur ma couche,
À ce vivant je vis d'appartenir!

Zénon! Cruel Zénon! Zénon d'Êlée!
M'as-tu percé de cette flèche ailée
Qui vibre, vole, et qui ne vole pas!
Le son m'enfante et la flèche me tue!
Ah! le soleil . . . Quelle ombre de tortue
Pour l'âme, Achille immobile à grands pas!

Non, non! . . . Debout! Dans l'ère successive!
Brisez, mon corps, cette forme pensive!
Buvez, mon sein, la naissance du vent!
Une fraîcheur, de la mer exhalée,
Me rend mon âme . . . O puissance salée!
Courons à l'onde en rejaillir vivant.

Oui! grande mer de delires douée,
Peau de panthère et chlamyde trouée,
De mille et mille idoles du soleil,
Hydre absolue, ivre de ta chair bleue,
Qui te remords l'étincelante queue
Dans un tumulte au silence pareil

Le vent se lève! . . . il faut tenter de vivre!
L'air immense ouvre et referme mon livre,
La vague en poudre ose jaillir des rocs!
Envolez-vous, pages tout éblouies!
Rompez, vagues! Rompez d'eaux rejouies
Ce toit tranquille où picoraient des focs!