Monday, February 13, 2006

Romantismo (1836-1875)

J. G. Merquior

Romantismo foi o estilo que prevaleceu, nas letras nacionais, do final da Regência até os primeiros anos subseqüentes à guerra do Paraguai. Logo, cobre o inicio e o apogeu do Segundo Reinado, período em que a velha sociedade senhorial conhece o seu último grande surto de desenvolvimento. Por outro lado, o romantismo foi a primeira grande resposta estética da cultura ocidental às duas realidades que marcam o advento da fase propriamente contemporânea dos tempos modernos: a Revolução Industrial e a revolução social, inaugurada pela Revolução Francesa de 1789. Nessa qualidade de primeiro grande estilo da era contemporânea, o romantismo representou uma ruptura profunda com o universo mental da arte anterior. Romântico vem de “romance”, no sentido de história “interessante”, pitoresca, fantástica, extravagante. Novalis, grande poeta do romantismo alemão, queria que a poesia fosse uma “arma de defesa contra o cotidiano”. Reação à prosa da vida, ao aburguesamento dos valores, o romantismo ficaria estigmatizado pela nostalgia dos paraísos perdidos.

O fundo sociológico contra o qual se formou o romantismo europeu inexiste, evidentemente, no Brasil do meio do século XIX. O romantismo brasileiro, beneficiando-se da institucionalização da atividade literária pelo neoclassicismo da independência, buscou sincronizar a literatura do Brasil com o ritmo evolutivo da arte européia. Por outro lado, ele também se empenhou em conferir um conteúdo nacional à estética romântica. Se o neoclassicismo fora a primeira fase ideologicamente articulada das letras brasileiras, o romantismo foi sua primeira articulação nacional: o nosso primeiro sistema literário não só dotado de consciência ideológica, como de uma consciência programática da sua brasilidade.

O êxito da nacionalização da estética romântica deve-se ao seu próprio historicismo e à coincidência entre o romantismo e a época de fundação nacional dos países latino-americanos. No caso do Brasil, a consolidação da nacionalidade se identificou com o esforço centralizador do Império, empreendido pelas oligarquias rurais.

Esse período de afirmação nacional necessitava, ao nível da cultura de suas elites, de um complexo mitológico suscetível de celebrar a originalidade da jovem pátria ante a Europa e a ex-metrópole. Nesse ponto, entram em função o exotismo romântico e o gosto pelo passado remoto: a sociedade tribal ameríndia de antes da descoberta era, de fato, a nossa “Idade Média”. O indianismo é, assim, descoberto pelos românticos, como alimento mítico reclamado pela civilização imperial, na adolescência do Brasil Nação. O amparo que o mecenato oficial deu à épica indianista traduz o reconhecimento dessa função ideológica. Além disso, utilizando-se de gêneros menos “nobres” e mais populares do que o repertório neoclássico, a literatura romântica manteve-se permeável à criação folclórica e à subliteratura, isso numa sociedade pouco livresca e escassamente letrada. Por meio dessa “porosidade” cultural, a produção romântica entrou nos costumes e, face aos estilos dos seus sucessores, estava ao alcance intelectualmente pouco elevado d estudantes e sinhás. O enraizar-se do romantismo representou o triunfo da oralidade na literatura: o predomínio da experiência da palavra falada sobre o hábito sistemático da leitura reflexiva.

Em sua ultima fase, o romantismo brasileiro trocou a mística indianista, ideologia formativa de cunho conservador, pela militância liberal. Esta evolução é expressa na passagem de Gonçalves Dias e José de Alencar para Castro Alves. Mas quando essa conversão liberal se verificou, o romantismo já havia realizado a sua mais bela conquista: a instauração de uma língua literária brasileira. A nacionalização estética almejada pelos românticos sobreviveu, no plano essencial do idioma literário, aos próprios modelos da escola. No Brasil, desde o romantismo, fala-se português, mas não se escreve à portuguesa. Pois só numa língua poética nacionalizada a literatura conseguiria atualizar o seu potencial de interpretação da realidade humana numa perspectiva autenticamente brasileira.

Todavia, esse potencial de interpretação crítica da experiência humana, o nosso romantismo só o utilizou muito moderadamente. É que os românticos brasileiros não dispunham dos estímulos socioculturais que lhe serviam de base, e o romantismo Ocidental foi um movimento de crítica da civilização, de protesto cultural. Em conseqüência, o conjunto da nossa produção romântica permaneceu, filosófica e psicologicamente, num plano mais superficial, mais conformado às convenções burguesas: a consciência do nosso romantismo foi, bem mais que crítica, uma consciência ingênua. Considerada globalmente, a literatura romântica do Brasil se aproxima mais da estética aburguesada e oficial do meio século – da literatura vitoriana de Tennyson e Longfellow – do que do ímpeto culturalmente inconformista do romantismo de Novalis, Wordsworth, Byron, Keats e Nerval.

Texto extraído e adaptado do livro De Anchieta a Euclides – Breve História da Literatura Brasileira.Cap. III, pág. 72 a 81. 3ª ed.; Topbooks.

Worth quoting

extraído do site do articulista e historiador australiano Keith Windschuttle : www.sydneyline.com

Pipes believes its [Communism's] failure was inevitable both because its quest for an egalitarian society required an oppressive master-class whose privilege rendered equality impossible, and because nationalism is a much stronger force than class solidarity. I would add a third reason: Marx was an intellectual crook, who faked, bent, or suppressed evidence to suit his preconceived conclusions. His theory was thus inherently wrong and was certain to fail when put into practice. Not least, Marx's dishonesty deceived all his followers about the wealth-creating power and protean resilience of market capitalism, which thus "buried" Communism, not the other way round. It is worth noting, because it explains so much, that Communism and capitalism are not polarities. Communism is the application of an artificial man-made ideology. Capitalism is not an "ism" at all but a natural process which tends to occur at a certain point of human development, thereafter updating itself from time to time, as survival dictates. Darwin can tell us more about it than Marx.

-- Paul Johnson, reviewing Richard Pipes, Communism: A Brief History, in Times Literary Supplement, January 18 2002, p 11


Saturday, February 04, 2006

Julián Marías - Uma visão antropológica do aborto

Julián Marias foi aluno de Zubiri e deixou grande obra escrita, inclusive uma História da Filosofia, publicada em português pela Martins Fontes. Pouco li de sua obra, mas, por ser um verdadeiro intelectual, fica minha homenagem. E.S.

Publicado no site www.midiasemmascara.org

© 2006 MidiaSemMascara.org

Nota editorial: A morte do filósofo e escritor espanhol Julián Marías, em dezembro de 2005, foi pouco notada no Brasil. Discípulo de José Ortega y Gasset, Marías foi responsável por introduzir milhares de jovens e adultos no mundo da filosofia, versando sobre assuntos complexos com brilhante profundidade e simplicidade. Neste artigo publicado em 1983 na revista Cuenta y Razón, traduzido com exclusividade para o MSM, Marías lida com a questão social que, de todas, considerava a mais grave: a aceitação do aborto voluntário.

***

A espinhosa questão do aborto voluntário que nos últimos anos adquiriu uma amplitude descomunal, até converter-se em uma das questões mais urgentes nas sociedades ocidentais, pode ser proposta de diversas maneiras. Entre os que consideram a inconveniência ou ilicitude do aborto, a posição mais freqüente é a religiosa. Sem dúvida que, para os cristãos (às vezes, de maneira mais estreita, para os católicos), o aborto pode ser ilícito mas não se pode impor a uma sociedade inteira uma moral “particular”. Quer dizer, os argumentos fundados na fé religiosa não são válidos para os não crentes.

Raramente se investiga se os argumentos assim propostos, ainda que procedendo de uma maneira cristã de ver a realidade, não têm força de convicção inclusive prescindindo dessa origem; o fato é que todos os que não participam dessa crença os repudiam e consideram que não lhes podem levar em conta. E os fatos devem ser considerados.

Há outra posição que pretende ter validade universal, que é a científica. As razões biológicas, concretamente genéticas, são tidas como demonstráveis, inteiramente fidedignas, conclusivas para todos. Certamente essas razões têm valor muito alto, e devem ser levadas em conta, mas suas provas não são acessíveis à imensa maioria dos homens e mulheres, que as admitem por fé (isto é, por fé na ciência, pela validade que ela tem no mundo atual).

Há outro fator que me parece mais grave a respeito da posição científica da questão: depende do estado atual da ciência biológica, dos resultados da mais recente e avançada investigação. Quero dizer que o que hoje se sabe, não se sabia antes. Os argumentos dos biólogos e geneticistas, válidos para o que conhece estas disciplinas e para os que participam da confiança nelas, não foram válidos para os homens e mulheres de outros tempos, inclusive muito recentemente.

Creio que faz falta uma posição elementar, ligada à mera condição humana, acessível a todos, independente de conhecimentos científicos ou teológicos que poucos possuem. É forçoso propor uma questão tão importante, de conseqüências práticas decisivas, que afeta a milhões de pessoas e à possibilidade de vida de milhões de crianças que nascerão ou deixarão de nascer, de uma maneira evidente, imediata, fundada no que todos vivem e entendem sem interposição de teorias (que às vezes impedem a visão direta e provocam desorientação).

Esta visão não pode ser outra senão a antropológica, fundada na mera realidade do homem tal como se vê, se vive, se compreende a si mesmo. Temos, pois, de tentar retroceder ao mais elementar, que não tem pressupostos de nenhuma ciência ou doutrina, que apela unicamente à evidência e não pede mais que uma coisa: abrir os olhos e não colocar-se de costas para a realidade.

Trata-se da distinção decisiva entre coisa e pessoa. Bem, dito assim pode parecer coisa de doutrina. Por verdadeira e justificável que seja, evitemo-la. Limetemo-nos a algo que faz parte de nossa vida mais elementar e espontânea: o uso da língua.

Todo mundo, em todas as línguas que conheço, distingue, sem a menor possibilidade de confusão, entre que e quem, algo e alguém, nada e ninguém. Se entro em uma casa onde não há nenhuma pessoa, direi: “não há ninguém”, mas não me ocorrerá dizer: “não há nada”, porque pode estar cheia de móveis, livros, lustres, quadros. Se se ouve um grande ruído estranho, me alarmarei e perguntarei: “O que é isso?”. Mas se ouço batidas na porta, nunca perguntarei “o que é?” mas sim “quem é?”. Apesar disso, a ciência e mesmo a filosofia estão há dois milênios e meio fazendo a pergunta: “Que é o homem?”, com a qual pelo menos derrubaram a estrutura de uma resposta errada, porque só de maneira muito secundária é o homem um “que”; a pergunta certa e pertinente seria: “Quem é o homem?”, ou, com mais rigor e adequação: “Quem sou eu?”.

Claro, “eu” ou “tu”, ou “ele” sempre que se entenda de maneira inequivocamente pessoal. É significativo que os pronomes de primeira e segunda pessoa (eu, tu) têm somente uma forma, sem distinção de gênero, enquanto que o da terceira pessoa admite essa distinção, e inclusive com dois gêneros (ele, ela). Quem fala e a quem se fala são realidades imediatas e pessoas, e seu gênero é evidente na ação mesma, mas não é assim quando se fala de alguém no presente (e, ademais, se pode falar de algo).

O que isso tem a ver com o aborto? O que me interessa aqui é ver o que é, em que consiste, qual é a sua realidade. O nascimento de uma criança é uma radical inovação de realidade: a aparição de uma realidade nova. Dirão talvez que não é propriamente nova, uma vez que se deriva ou vem de seus pais. Direi que é verdade e muito mais: dos pais, dos avós, de todos os antepassados; e também do oxigênio, nitrogênio, hidrogênio, carbono, cálcio, fósforo e todos os demais elementos que intervêm na composição de seu organismo. O corpo, o psíquico, até o caráter vem daí e não é algo rigorosamente novo.

Diremos que o que a criança é se deriva de tudo isso que enumeramos, é reduzível a isso. É uma “coisa”, certamente animada e não inerte, diferente de todas as demais, em muitos sentidos única, mas uma coisa. Desse ponto de vista, sua destruição é irreparável, como quando se quebra uma peça que é exemplar único. Todavia, isso não é o importante.

O que é a criança pode “reduzir-se” a seus pais e ao mundo; mas a criança não é o que é. É alguém. Não um que, mas um quem, alguém a quem se diz tu, que dirá no momento certo, dentro de algum tempo, eu. E este quem é irreduzível a tudo e a todos, aos elementos químicos e a seus pais, e a Deus mesmo, se pensarmos nele. Ao dizer “eu”, enfrenta-se com todo o universo, contrapõe-se polarmente a tudo o que não é ele, a tudo o mais (incluindo, claro, o que é).

É um terceiro absolutamente novo, que se soma ao pai e à mãe. E é tão distinto do que é, que dois gêmeos univitelinos, biologicamente indiscerníveis e que podemos supor “idênticos”, são absolutamente distintos entre si e a cada um dos demais; são, sem a menor sombra de dúvida, “eu” e “tu”.

Quando se diz que o feto é “parte” do corpo da mãe, se diz uma grande falsidade, porque não é parte: está alojado nela, melhor ainda, implantado nela (nela e não meramente em seu corpo). Uma mulher dirá: “estou grávida”, nunca “meu corpo está grávido”. É um assunto pessoal por parte da mãe.

Ademais, e sobretudo, a questão não se reduz ao que, senão a esse quem, a esse terceiro que vem e que fará com que sejam três os que antes eram dois. Para que isto seja mais claro ainda, pensemos na morte. Quando alguém morre, nos deixa sós; éramos dois e agora não há mais que um. Inversamente, quando alguém nasce, há três em vez de dois (ou, se for o caso, dois em vez de um).

Isto é o que se vive de maneira imediata, o que se impõe à evidência sem teorias, o que refletem os usos da linguagem. Uma mulher diz: “vou ter um filho”; não diz: “tenho um tumor”. (Quando uma mulher acredita estar grávida e verifica que o que tem é um tumor, sua surpresa é tal que mostra até que ponto se trata de realidades radicalmente diferentes).

A criança não nascida ainda é uma realidade vindoura, que chegará se não a pararmos, se não a matarmos no caminho. Mas se investigarmos bem as coisas, isso não é exclusivo da criança antes do nascimento: o homem é sempre uma realidade vindoura, que vai se fazendo e realizando, alguém sempre inconcluso, um projeto inacabado, um argumento que tende a uma solução.

E se dissermos que o feto não é um “quem” porque não tem uma vida “pessoal”, então teríamos que dizer o mesmo da criança já nascida durante muitos meses (e do homem durante o sono profundo, da anestesia, da arteriosclerose avançada, da extrema senilidade, sem dizer do estado de coma).

Às vezes lançam mão de uma expressão de refinada hipocrisia para denomiar o aborto provocado; dizem que é a “interrupção da gravidez”. Os partidários da pena de morte teriam suas dificuldades resolvidas: para que falar de tal pena, de tal morte? A forca ou o garrote podem chamar-se “interrupção da respiração” (e basta um par de minutos); já não há mais problema. Quando provoca-se o aborto ou enforca-se alguém, não se interrompe a gravidez ou a respiração; em ambos os casos mata-se alguém.

E, claro, é uma hipocrisia ainda maior considerar que há diferença em que lugar do caminho se encontra a criança, a que distância em semanas ou meses dessa etapa da vida que se chama nascimento será surpreendida pela morte.

Consideremos outro aspecto da questão. Com freqüência se afirma a licitude do aborto quando se julga que provavelmente aquele que vai nascer (ou que iria nascer) seria anormal, física ou psiquicamente. Mas isso implica que o que é anormal não deve viver, já que essa condição não é provável, senão segura. E teríamos de estender a mesma norma ao que chega a ser anormal por acidente, enfermidade ou velhice. Se temos tal convicção, então temos de sustentá-la com todas as suas conseqüências. Esta situação não é nova; já foi aplicada, e com grande amplitude, na Alemanha hitlerista, há meio século, com o nome de eugenia prática.

O que me interessa é entender o que é aborto. Com incrível freqüência mascara-se sua realidade com seus fins. Quero dizer que tentam identificar o aborto com certos propósitos que pareçam valiosos, convenientes ou pelo menos aceitáveis: por exemplo, o controle populacional, o bem-estar dos pais, a situação da mãe solteira, as dificuldades econômicas, a conveniência de dispor de tempo livre, a melhoria da raça. Poder-se-ia investigar em cada caso a veracidade ou a justificação desses mesmos fins (por exemplo, foi feita uma campanha abortista em uma região da América do Sul de 144.000 quilômetros quadrados de extensão e 25.000 habitantes, isto é, despovoada). Mas o que quero mostrar é que esses fins não são o aborto.

O correto seria dizer: para isso (para conseguir isso ou aquilo) deve-se matar tais pessoas. Isto é o que se propõe, o que em tantos casos se faz em muitos países na época em que vivemos. Esta é a significação antropológica dessa palavra tão usada e abusada, que se escreve mais vezes em um só dia do que em qualquer outra época em um ano.

E mais uma prova de como se pensa o tema do aborto, eliminando arbitrariamente a condição pessoal do homem, o caráter de quem se fala, é que em muitas legislações sobre o assunto – sem irmos mais longe, a que se propõe atualmente na Espanha – se prescinde inteiramente do pai. Atribui-se a decisão exclusivamente à mãe (a palavra não parece inteiramente apropriada, seria mais adequado falar da fêmea grávida), sem que o pai tenha nada a dizer. Isto é, mesmo no caso em que o pai seja perfeitamente conhecido e legítimo, por exemplo, se se trata de uma mulher casada, é ela e somente ela é quem decide, e se sua decisão é abortar, o pai não pode fazer nada para que não matem a seu filho.

Isto, claro, não se diz assim; tende-se a não dizê-lo, a passar por alto, para que não se advirta o que significa. Em uma época em que se fala tanto da “mulher objeto” – não sei se alguma vez chegou a ser assim; suspeito que sempre a viram como “sujeito” (ou “sujeita”) –, um caminho foi aberto na mente de inúmeras pessoas a interpretação da criança-objeto, da criança-tumor, que se pode extirpar como um crescimento nojento. Trata-se de obliterar literalmente o caráter pessoal do humano. Para isso fala-se do “direito de dispor do próprio corpo”. Mas, além da criança não ser o corpo do mãe, senão que é alguém corporalmente implantado na realidade corporal de sua mãe, é que esse suposto direito não existe. A ninguém se permite a mutilação: se eu quero cortar minha mão num golpe só, os outros, e em última instância o poder público, me impedirão; sem falar no caso de querer cortar a mão de outrem, mesmo com seu consentimento. E se quero me atirar da janela ou de um terraço, a polícia e os bombeiros acudir-me-ão e pela força me impedem de realizar esse ato, do qual me pedirão explicações.

O núcleo da questão é a negação do caráter pessoal do homem. Por isso oculta-se a paternidade; por isso reduz-se a maternidade ao estado de suportar um crescimento intruso que pode ser eliminado. Descarta-se todo uso possível do quem, dos pronomes tu e eu. Tão logo apareçam, toda o castelo erguido para justificar o aborto rui como uma monstruosidade.

Por acaso não se trata precisamente disso? Não estará em curso um processo de despersonalização, isto é, de desumanização do homem e da mulher, as duas formas irredutíveis, mutuamente necessárias em que se realiza a vida humana?

Se as relações de maternidade e paternidade forem abolidas, se a relação entre os pais for reduzida a uma mera função biológica sem duração para além do ato de geração, sem nenhuma significação pessoal entre as três pessoas implicadas, que ocorre de humano em tudo isso? E se isso se impõe e se generaliza, se em fins do século XX a humanidade vive de acordo com esses princípios, não estará comprometida, quem sabe até quando, essa mesma condição humana?

Por isso me parece que a aceitação social do aborto é, sem exceção, o que de mais grave tem acontecido neste século que vai chegando ao fim.

Recuperação da vida da Razão: os Princípios da Perfeição, Formação e Fundamentação. (Parte 2)

Eric Voegelin

O presente ensaio [Reason: The Classic Experience] é, obviamente, um ato de resistência em continuidade com o esforço clássico. As táticas utilizadas tornar-se-ão claras. Em primeiro lugar, o praticamente esquecido contexto experiencial do qual depende o significado da razão teve de ser restaurado. Ademais, tanto quanto foi possível nesse curto espaço, tentei estabelecer a coerência interna das partes da análise que nas fontes estão dispersas em ampla literatura. Da base da experiência restaurada, então, foi possível avançar para a psicopatologia da alienação e para a aspernatio rationis*. E dessa base alargada pela análise estóica foi possível, finalmente, caracterizar a revolta moderna contra a Razão, assim como o fenômeno do sistema.

Nessa difícil caracterização, contudo, tive de concentrar e selecionar os casos flagrantes; a importância geral da análise clássica como instrumento de crítica não se tornou inteiramente visível. Logo, será oportuno apresentar um diagrama dos pontos a serem considerados em qualquer estudo das relações humanas, do peri ta anthropina, no sentido aristotélico.

A coluna vertical da esquerda lista os níveis na hierarquia do ser do Nous ao Apeiron. O homem participa de todos eles, sua natureza é um epítome da hierarquia do ser. A seta apontando para baixo indica a ordem de formação de cima para baixo. A seta apontando para cima indica a ordem de fundamento de baixo para cima. A coluna horizontal no alto mostra as dimensões da existência humana como pessoa na sociedade e na história. A seta apontando para a direita indica a ordem de fundamentação.

Princípio da perfeição: uma filosofia peri ta anthropina deve cobrir a grade determinada pelas duas coordenadas. Parte alguma da grade deve ser hipostasiada em um ente autônomo, negando o contexto.

Princípio da formação e da fundamentação: a ordem da formação e da fundamentação não deve ser invertida ou distorcida, como, por exemplo, pela sua transformação em uma causalidade agindo de cima ou de baixo. Especificamente, todas as construções de fenômenos de um nível mais alto como epifenômenos de processos em um nível mais baixo, as chamadas falácias reducionistas, estão excluídas como falsas. Essa regra, contudo, não afeta a causalidade condicionante que é a essência mesma da fundamentação. Inversões da ordem de fundamentação na coluna horizontal tão-pouco são permitidas. Especificamente, todas as “filosofias da história” que hipostasiam a sociedade ou a história como absolutos, eclipsando a existência pessoal e seu significado, estão excluídas como falsas.

Princípio da realidade metáxica: a realidade determinada pelas coordenadas é a realidade participatória (In-Between reality), inteligível como tal pela consciência do Nous e do Apeíron como seus pólos limitantes. Todas as “fantasias erísticas” que tentam converter os limites da metaxy - seja esse limite a altura noética ou a profundidade apeirôntica – em um fenômeno dentro da metaxy devem ser excluídas como falsas. Essa regra não afeta os simbolismos escatológicos e apocalípticos genuínos que imaginativamente expressam a experiência de um movimento dentro da realidade em direção a um Além da metaxy, como são, por exemplo, as experiências da mortalidade e da imortalidade.

O diagrama mostra-se de valor particular para estudantes, uma vez que lhes fornece um corpo mínimo de critérios objetivos para o verdadeiro e para o falso na luta contra a avalanche contemporânea de literatura opinante. Ajudado pelo diagrama, é possível classificar falsas proposições teoréticas localizando-as na grade. Marcar num dos 21 retângulos do diagrama as idéias populares do momento pode ser um jogo emocionante para os estudantes. Além de funcionar como auxílio técnico para o domínio dos fenômenos contemporâneos de desordem intelectual, o diagrama teve, nos estudantes, o importante efeito psicológico de superar o sentido de desorientação e de perda na avalanche ingovernável de falsas opiniões que lhes atinge todo dia.

* desprezo pela razão.

Tradução: E. Santiago

CW VOL 12,
Reason: The Classic Experience
Appendix
pp 289-291.