Eunucos Espirituais e o Páthos da Ciência
(1) A transferência para a existência do phátos de autonomia e autoconfiança que estimula o progresso da ciência se expressa concretamente no crescimento da crença de que a existência humana pode ser orientada de modo absoluto através da verdade da ciência. Se essa idéia é legítima, então torna-se desnecessário cultivar o conhecimento para além da ciência. Como conseqüência, a preocupação com a ciência e a posse do saber científico servem para legitimar a ignorância no que diz respeito a todos os problemas que se situam acima da ciência dos fenômenos. A disseminação dessa crença permitiu que, na civilização ocidental, um progresso cientifico esplêndido ocorresse paralelamente a um execrável progresso da ignorância no que diz respeito aos problemas existenciais mais importantes.
(2) Por si mesma, a ignorância em massa já seria ruim o bastante. Ainda assim, a mera ignorância poderia ser reparada pelo estudo. A ignorância cientificista torna-se um desastre para a civilização, pois o verdadeiro ordenamento da existência não pode ser alcançado mediante a aquisição de conhecimento no sentido fenomenal. Ele requer a formação da personalidade em um processo educacional, e esse processo requer instituições.
Uma vez que o páthos cientifico tenha penetrado nas instituições educacionais de uma sociedade, ele torna-se uma força que dificilmente pode ser quebrada, se é que pode. O problema, portanto, já não é mais a mera ignorância. Se a crença no ordenamento auto-suficiente da existência através da ciência está entrincheirada na sociedade, ela torna-se uma força que, com vigor, impede o cultivo da substância humana e corrói ainda mais os elementos sobreviventes da tradição cultural.
Além disso, a cada homem é dado diferentemente o cultivo da substância (dado no sentido Paulino, de dádiva; dotado de charismata espiritual). Os portadores do páthos da ciência serão homens carentes dessa dádiva, e a impregnação da sociedade com o páthos cientifico cria um ambiente que favorece o sucesso social de tipos humanos deficientes. Por conseguinte, o progresso da ciência e o crescimento de fatores racional-utilitários são acompanhados pela reestratificação da sociedade, a qual, por sua vez, parece ter chamado pouca atenção até agora, uma vez que não pode ser expressa em termos de classes sociais. A reestratificação por meio do prestígio social e do sucesso dos tipos deficientes deve ser expressa em termos de substância humana. Poderíamos utilizar o termo eunuquismo espiritual para designar os traços de personalidade que fazem de um homem provável vítima do páthos cientifico, assim como para designar os traços que um sociedade adquire quando esses tipos humanos ganham ascendência social...
(3) Outro traço relacionado à transferência do páthos é o aumento do diletantismo agressivo em assuntos filosóficos. Novamente, essa não é uma questão de simples ignorância ou diletantismo que pode ocorrer em qualquer época. O mais novo e perigoso elemento é a prontidão do diletante em impor sua ignorância como padrão para os outros. A resposta de Clarke – “Eu não entendo” – à exposição de Leibniz sobre os problemas do tempo e do espaço é o sintoma sinistro dessa nova atitude. Ele realmente não entende – e isso resolve a questão a seu favor. O que um diletante cientifico não pode entender não deve ser proposto na discussão de um problema... O que Newton tinha para dizer nas suas definições do espaço afetava a formação das idéias políticas incomensuravelmente. O êxito social da teoria newtoniana do espaço absoluto é o primeiro grande exemplo das teorias diletantes bem sucedidas, promovidas ou pelos próprios cientistas, ou – após a transferência em grande escala do páthos da ciência – pelos grandes eunucos espirituais do século XIX. Sem a impressão de prestígio dada pelo cientificismo, esses grandes escândalos intelectuais, como o sucesso do positivismo, do evolucionismo darwinista e do marxismo, seriam impensáveis.
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