A IDÉIA DE FILOSOFIA EM ARISTÓTELES
Xavier Zubiri
Do livro Naturaleza, Historia, Dios
A palavra sophía é o abstrato do adjetivo sophós, que significou “entendido em algo”. Esse algo podia ser o mais variado: uma habilidade manual, o governo das cidades, a arte e, sobretudo, o último do mundo e da vida. Mas o essencial é que o substantivo sophía denota muito mais que o conteúdo ao qual se aplica, um atributo do sophós mesmo; sophía é uma qualidade, um modo de ser do homem, algo que o faz ser um artífice, um artista ou um “sábio”. Há, pois, uma clara distinção entre a sophía como um modo que o homem possui para enfrentar as coisas, e a sophía enquanto qualificada pelas zonas diversas com que se enfrenta*. Essas zonas podem ser, conforme dissemos, muito variadas; para o nosso problema, a que nos interessa especialmente é a zona das ultimidades do mundo e da vida. A sophía é um saber acerca dessas ultimidades. Mas, como propriedade do sophós, esssa sophía pode possuir e possui, efetivamente, matizes diversos. Assim, no Oriente, a sophía acentuou, sobretudo, o caráter operativo do saber. Já na Grécia, foi adotando matizes cada vez mais sensivelmente intelectuais. Na Jônia, a sophía é o modo de ser não de quem faz, e sim de quem sabe fazer; daquele que conhece como se deve trabalhar ou governar, ou como se produzem os eventos dos deuses e do mundo. A sophía foi associando-se cada vez mais intimamente com o puro exame do mundo, independentemente das ações humanas: “para examiná-los” é por que atravessa Sólon muitos países, e por isso Heródoto qualificou-o de sábio. A sophía, como theoría, foi a grande criação da Grécia, algo que afeta o modo mental de situar-se ante as coisas, mais que à zona de objetos sobre a qual recai. Essa theoría grega desenvolveu-se desde a simples consideração teorética dos jônicos até a sua articulação racional
Pois bem: essa distinção entre o tipo de atitude mental e as zonas que ela abarca deve estender-se também a esse modo especial de sophía, que se chamou philosophía. Nela há de se distinguir também, por um lado, as distintas zonas de realidade que abarca e, por outro, o tipo de saber que a constitui.
Primeiramente, o saber filosófico vai descobrindo na Grécia zonas de realidade distintas, com peculiaridades próprias; vai iluminando regiões do universo cada vez mais insuspeitadas e fazendo delas objeto seu. Num princípio, o saber filosófico ocupou-se preferencialmente dos deuses, e viu no mundo uma espécie de prolongamento genético desses deuses. Junto aos deuses, os jônicos descobrem a natureza como algo próprio. Mais tarde, Parmênides e Heráclito, por sua vez, descobrem nela essa misteriosa e sutil qualidade do “ser”, pela qual dizemos que essa natureza é a realidade.[1] Os físicos sicilianos e atenienses encontram a realidade da natureza na zona oculta dos “elementos”. Com os pitagóricos aparecem, junto à natureza, os objetos matemáticos, cuja realidade é distinta da dos seres naturais. A idéia de realidade sofre, então, uma modificação e uma ampliação essenciais. Os sofistas e Sócrates põem ante os olhos de seus contemporâneos a realidade autônoma do orbe vital, tanto político quanto ético: o discurso, a virtude e o bem. Com Platão, entre os deuses e toda essa realidade física, matemática e humana, aparecem as Idéias, o mundo das essências ideais.
Mas, junto a esse desenvolvimento que afeta a amplitude de seu campo está outro, muito mais obscuro, que afeta o tipo de saber constitutivo da filosofia. É mister chamar a atenção sobre ele, porque é algo que quase sempre -- e o quase o ponho por prudência – tem sido preterido: ante os olhos dos homens não apenas se ampliaram as zonas de realidade, modificando-se assim o sentido que a realidade possui, mas também foram modificando-se, simultaneamente, a estrutura mesma do saber filosófico enquanto forma de saber. A “definição” da filosofia por seu conteúdo é coisa distinta da sua definição como forma de saber.
Já o indicávamos antes. A sophía, como atitude mental, desenvolveu-se no Oriente por sua dimensão operativa. Na Grécia, por outro lado, adscreveu-se ao mero conhecimento. Ainda em sua acepção mais corrente, o experto (empeirós), o técnico (tekhnítes) e o dirigente da vida humana (phrónimos), significam sempre homens que têm a qualidade de saber fazer algo. É o que Aristóteles expressava ao dizer que com esses três modos de saber (empeiría, tékhne, phrónesis) o homem aletheúei, vocábulo de difícil tradução significando, talvez, “descobre a verdade”. O saber vai dirigido, pois, ao descobrimento do sabido. E em sentido lato chamou-se a todos esses homens sophoí. Junto a esses três modos de saber, a sophía propriamente dita, em sentido estrito, é para um grego o modo supremo de descobrir a verdade. Enquanto naqueles três modos o homem sabe das coisas em/e/para seu fazer com elas, na sophía vai-se ao descobrimento da verdade por si - mesma, vai-se à teoria. E este tipo de sophía, em que não se busca nada senão a sophia mesma, é o que se chamou “o gosto por saber”, philosophía, frente à philokalía, o gosto pela beleza. Em Heródoto, a idéia de filosofia aparece, conforme vimos, em forma ainda participativa; como substantivo só começou a ser usada justamente no circulo socrático para indicar a qualidade, o habito mental desse novo modo de sophía. O tipo de vida intelectual de quem possui essa qualidade foi denominado bios theoretikós, vida teorética.
A sophía como atitude mental começou com os jônicos, sendo, como havíamos dito, o que vagamente não se chamou senão theoría, exame ou estudo da natureza por si mesma, um esforço dirigido à verdade pela verdade. Imediatamente depois, esse saber filosófico, que é a theoriu, adotou em Parmênides e Heráclito a forma de uma espécie de visão intelectual do mundo, noûs. Mais tarde em Atenas, finalmente, essa visão intelectual do mundo desdobrou-se em una explicação racional dele, em uma epistéme. A filosofia, pois, lançada pelo leito puramente intelectivo, começou por ser simples theoria, foi depois visão intelectual das coisas e terminou sendo uma ciência. E, à medida que se foram iluminando novas zonas de realidade, criavam-se novas formas de saber racional. Recordemos também, para ser completo, que com os sofistas a filosofia foi a cultura intelectual, a paideía.
Assim, no tempo de Platão e de Aristóteles tem-se uma multidão de ciências filosóficas da realidade. Isso fez com que, para Aristóteles, a palavra filosofia fosse, mais que o nome de uma ciência, o título de um problema. O que há em todas essas “filosofias” que justifique seus nomes? Por isso chamou Aristóteles a filosofia zetouméne epistéme, a ciência que se busca. A formula é equívoca e já compreendemos agora por que. Porque não se sabe se alude à primeira ou à segunda das duas dimensões da filosofia: ao seu conteúdo ou ao tipo de saber que a constitui. Creio essencial chamar a atenção sobre esse ponto.
O que vai envolto primeiro na fórmula aristotélica não é o esforço por descobrir o objeto próprio da filosofia e, logo, a existência desta. Mas antes: Aristóteles a dá por suposta, ante o fato de que seus antepassados ocuparam-se em criar, e criaram, efetivamente, saberes filosóficos. Aristóteles não busca, pois, primariamente a filosofia. O que Aristóteles busca primariamente é a forma única sob a qual pode existir, segundo ele, o saber filosófico com pleno rigor intelectual. Essa é uma questão distinta da de seu objeto e anterior a ela. Aristóteles parte da idéia de que a filosofia há de ser um saber teorético. Sua busca está voltada para o caráter racional que há de adotar esse saber teorético que a filosofia já vinha sendo. O que busca formalmente é, pois, sua forma racional. Será possível fazer da filosofia uma epistéme? Uma forma especial, um tipo de filosofia: a filosofia como epistéme, e não a existência de toda possível filosofia, é o que constitui o termo primário da busca aristotélica. Como diria Hegel, trata de elevar a sofia ao nível de ciência. Que a idéia e até a pretensão estavam já parcialmente em marcha antes de Aristóteles é um fato inegável, mas Aristóteles encontra justificada sua preocupação ante a imensa variedade de zonas que a epistéme filosófica abarcava em seu tempo. Na realidade, o que havia era muitas ciências filosóficas, nas quais a única coisa que lhes dava unidade era o adjetivo “filosóficas”. Mas, à medida que seu conteúdo se enriquecia, o sentido desse adjetivo foi tornando-se cada vez mais turvo e obscuro. Que há, pois, em todas essas ciências que justifique seu epíteto de filosóficas? No fundo, Aristóteles trata de fazer-nos ver que entre tantas filosofias o filosófico de todas elas, a filosofia, foi ocultando sua essência atrás da floração exuberante dos conhecimentos filosóficos. Se pudéssemos saber com rigor o que é o filosófico em todas essas filosofias, teríamos descoberto algo que seria uma filosofia de tipo novo, de tipo superior às existentes até então; uma filosofia que não seria um saber filosófico acerca de um objeto mais, de uma nova zona do mundo, mas sim que seria a filosofia de todo saber filosófico em quanto tal. Por isso, também programaticamente, chamou-a Aristóteles filosofia por excelência, o saber filosófico em primeira linha, o saber filosófico propriamente dito, ou como disse “filosofia primeira”. Frente a ela, as filosofias de seu tempo seriam filosofias mais ou menos “regionais”, como se dizia há alguns anos. Aristóteles chamava-as filosofias segundas.
E o que Aristóteles encontra de problemático na idéia mesma dessa filosofia primeira? Antes de tudo, dizia, o tipo mesmo de saber que proporciona. Desde Parmênides tinha-se a impressão de que o saber filosófico dirigia-se em direção ao mais real da realidade. Mas essa concepção não passou, a rigor, de ser uma vaga perspectiva intelectual. Foi uma intuição apenas, não um conceito. E por isso o desdobrar da filosofía, desde Parménides a Aristóteles, acha-se caracterizado muito mais pelo descobrimento progressivo de distintas zonas de realidade que por uma elaboração da idéia do saber propriamente filosófico enquanto forma de saber.
As muitas filosofias haviam já adotado essa forma de saber que se chamou epistéme: uma explicação racional da necessidade e da estrutura interna da realidade. Aquela vaga intuição da realidade adotou a forma de um saber científico. Mas o que era a epistéme vinha qualificado muito mais pelos conhecimentos que subministrava do que pela forma mental que a constituía. Pois bem: Aristóteles, seguindo a pista de Platão, pretende que esse caráter científico afete também à estrutura mesma do filosófico enquanto filosófico. O filosófico de todas as ciências filosóficas há de ter, enquanto filosófico, caráter científico. Esse é o ponto de partida da busca aristotélica.
Aristóteles, pois, tem de plantear-se, antes de tudo, a questão de saber em que consiste o caráter do saber filosófico como ciência. Todas essas ciências filosóficas partem de uns primeiros pressupostos acerca da estrutura das coisas reais que estudam. Mas, para ditas ciências, esses princípios das coisas são tão-somente o começo de seu saber. Com elas explicam as coisas, mas os princípios mesmos não são objetos de sua inquisição. O filosófico do saber cientifico como forma de saber consistirá, pois, antes de tudo, em converter esses princípios particulares em objeto de esclarecimento. Com o qual as coisas mesmas ficam envoltas na filosofia. Aristóteles teve, então, a genial idéia de adscrever esses princípios à visão intelectual, ao noûs de que falou Parmênides: essa visão intelectual das coisas é agora concretamente uma visão de seus princípios. Mas isso não basta. É mister que essa visão seja algo mais; faz falta que se desdobre e articule em forma de explicação racional. Se isso fosse possível, teríamos uma ciência que, diferente das demais, buscaria seus próprios princípios e mover-se-ia em sua interna intelecção. A presença do noûs, da visão intelectual na epistéme, é o que dá a essa seu caráter propriamente filosófico; é o filosófico da ciência enquanto ciência. Caso se queira, é uma ciência que não só usa de princípios, mas também que se move internamente em sua íntima justificação: por isso, noûs com epistéme era como chamava Aristóteles a sophía.
Agora, se não fosse mais que isso, a ciência filosófica seria, no máximo, uma teoria das filosofias segundas. Nada mais distante da mente de Aristóteles. Para o estagirita, como para todo bom grego, toda ciência há de ter um objeto real e uns princípios próprios. Logo, essa ciência dos princípios de todas as demais ciências há de apoiar-se, caso queira existir, em algo real. É mister que essa inquisição de todos os princípios das coisas apóie-se, por sua vez, em princípios reais dessas, os quais, caso existam, serão não princípios particulares, mas sim supremos, princípios dos princípios, princípios absolutos (tá prota).
Assim, o esforço para construir uma ciência filosófica o leva, em conseqüência (e apenas em conseqüência), a um segundo esforço, a um esforço para encontrar na realidade um objeto que seja próprio a essa. A genialidade de Aristóteles nesse ponto estribou-se em não pretender que o objeto próprio da filosofia fosse uma zona especial da realidade[2] como o foi ainda para Platão: a filosofia há de abarcar a realidade inteira. Seu objeto há de determinar-se, pois, de modo diferente do que fazem as filosofias segundas. Enquanto essas ciências filosóficas estudam cada uma das distintas zonas da realidade, isto é, os distintos modos de ser reais que as coisas possuem, a filosofia primeira estudará a realidade enquanto tal. Do ponto de vista do seu objeto, o filosófico de todas as ciências filosóficas encontra-se justamente no estudar os distintos modos de realidade das coisas. É claro, então, que o real enquanto real constituirá o caráter do filosófico enquanto filosófico.
E aqui convergem os dois esforços da busca aristotélica: a filosofia propriamente dita somente será possível como ciência se a realidade do real tiver uma estrutura captável pela razão, se tiver uns primeiros princípios reais próprios, princípios não das coisas tais como são (hos estín) -- como pretendiam os físicos que especularam sobre os elementos --, e sim princípios da realidade enquanto tal (ón hei ón). Dito na fórmula aristotélica: a realidade enquanto tal tem uma estrutura fundamental, e a filosofia como ciência consistirá na aquisição dessas primariedades do ser, como dirá esplendidamente, muitos séculos depois, Duns Scot.
O descobrimento da filosofia primeira como ciência da realidade enquanto tal só foi possível para Aristóteles como término do intento de dar estrutura racional ao saber filosófico. O desdobramento desse intento é o que o levou a descobrir a realidade enquanto tal. Isso que é importante sublinhar.
O essencial é, pois, que com Aristóteles temos não a filosofia enquanto tal, e sim uma forma determinada de filosofia: a filosofia como ciência. Há outras possibilidades: por um lado, a filosofia, o Veda, foi no Oriente outra coisa -- um saber operativo. Na Grécia, depois de Aristóteles, a filosofia foi também algo distinto. E na Europa pós-clássica a filosofia como tal revestiu, algumas vezes, formas mentais distintas.
* Havia um erro de transcrição na fonte – achada na web -- que utilizei para essa tradução, por isso esse período está tão confuso e com o aspecto de incompleto. NT.
Notas:
[1] A rigor, os jônicos descobrem não a idéia de Natureza, e sim a Natureza mesma; Parmênides descobre o ser, mais que sua idéia.
Tradução: E. Santiago
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