HEGEL: A CHAVE PARA ENTENDER A EXISTÊNCIA MODERNA
Eric Voegelin
[A seguinte passagem revela o intenso ressentimento de Hegel, assim como sua causa:
Todo homem não passa de um elo oculto na cadeia de necessidade absoluta pela qual o mundo aperfeiçoa a si mesmo ( sich fortbildet ). O homem comum pode elevar-se ao domínio ( Herrschaft ) sobre uma extensão sensível dessa cadeia apenas se souber a direção na qual a grande necessidade quer mover- se e se aprender, a partir desse conhecimento, a pronunciar as palavras mágicas ( die Zauberworte ) que evocarão sua forma ( Gestalt ).
{ Fortsetzung des “Systems der Sittlichkeit ,” (1804-1806, escritos enquanto Hegel trabalhava na Phaenomenologie ) Dokumente zu Hegels Entwicklung , Stuttgart, 1936, 314-325, at 324.}]
Essa passagem é a chave para o entendimento da existência moderna. O homem tornou-se um nada, ele não possui realidade por si mesmo; o homem é uma partícula cega na marcha do mundo, o qual possui o monopólio da realidade e do sentido verdadeiros. Para elevar-se do nada a algo, a partícula cega deve tornar-se uma partícula capaz de enxergar. Mas, mesmo que tenha adquirido visão, a partícula não vê senão a direção na qual o processo está se movendo, quer este seja visto ou não pela partícula.
Todavia, para Hegel algo importante foi obtido: o nada que se ergueu a algo tornou-se, se não um homem, pelo menos um feiticeiro que, embora incapaz de evocar a realidade da história, é capaz de evocar pelo menos sua forma. Quase hesito em continuar – o espetáculo de um niilista despindo-se por completo é desconcertante. Pois Hegel revela tantas vezes que ser um homem não é suficiente para ele; e como Hegel não pode ser ele mesmo o Senhor divino da história, ele irá alcançar o Herrschaft como o feiticeiro que evocará uma imagem da história – uma forma, um fantasma – destinada a eclipsar a história da criação Divina. O projeto imaginativo da história encaixa-se no padrão da existência moderna como instrumento de poder do prestidigitador.
Hegel conclui sua reflexão com a afirmação:
“Esse conhecimento -- o qual pretende incluir em si mesmo todo sofrimento e o conflito que por milhares de anos têm governado o mundo e todas as feições de sua formação ( Ausbildung ), e ao mesmo tempo elevar-se acima do conflito --, esse conhecimento só a filosofia pode fornecer.” (at 325)
“Esse conhecimento”, lembramos, é o conhecimento a partir do qual seu possuidor pode aprender as palavras mágicas que evocarão a forma das coisas que estão por vir. A respeito do seu conteúdo, “Esse conhecimento” deve ser o livro capaz de abarcar todo o sofrimento e conflito na marcha do mundo, pois apenas sendo um livro todo-abarcante pode o possuidor d’“esse conhecimento” elevar-se acima do conflito e do sofrimento mundanos. O tema da redenção e reconciliação é retomado. O conhecimento que tudo engloba deve ser alcançado para dar fim à marcha do mundo, dar fim a esse pesadelo de conflito e sofrimento, e para inaugurar a era da reconciliação.
Na verdade, uma forma é evocada no programa de Hegel: a forma do Cristo que conduz nos ombros o conflito e o sofrimento do mundo e, desse modo, torna-se seu redentor. Esse conhecimento redentor é o conhecimento que só a filosofia pode dar. A “Filosofia” torna-se o grimoire do mágico que evocará, para todos, a forma e a reconciliação que não pode alcançar para si na realidade de sua existência.
Tradução: E. Santiago
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