Thursday, April 13, 2006

O estruturalismo dos pobres*

José Guilherme Merquior

O estruturalismo dos pobres e outras questões
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975

*Originalmente publicado no Jornal do Brasil, em 27 de janeiro de 1974.

Extraído da http://jgmerquior.motime.com/

Se você quer estudar letras, prepare-se: que idéia faz você, já não digo da metalinguagem, mas, pelo menos, da gramática generativa do código poético? Qual a sua opinião sobre o rendimento, na tarefa de equacionar a literariedade do poemático, de microscopias montadas na fórmula poesia da gramática/gramática da poesia? Quantos actantes você é capaz de discernir na textualidade dos romances que provavelmente (tres-)leu? E que me diz do “plural do texto” de Barthes – é possível assimilá-lo ao genotexto da famigerada Kristeva? Sente-se você em condições de detectar o trabalho do significante no nouveau roman, por exemplo, por meio de uma “decodificação” “semannalítica” de bases glossemáticas? Ou prefere perseguir a “significância”, mercê de alguns cortes epistemológicos, no terreno da forclusão, tão limpidamente exposta no arquipedante seminário de Lacan?

Mas não, nem tudo é assim tão difícil: não me diga que acha duro compreender Abraham... Moles! Aliás, esse esoterismo não se restringe ao campo literário; estende-se à filosofia, ameaça a área inteira das ciências humanas. Hoje em dia, até os primeiranistas de jornalismo aprendem a questionar o Ser através de “colocações” heideggerianas, com grande luxo de trocadilhos etimológicos tão solenes quanto ridículos (os heideggerianos não tomaram conhecimento da arrasadora crítica de Nietzsche à falsa “profundidade” em filosofia).

E se você acha o estruturalismo uma parada, é pura ingenuidade sua: talvez você não saiba que o velho estruturalismo está superado, tão superado quanto a estilística; o estruturalismo vieille école faleceu em 1968, assassinado por Chomsky e pelo movimento de maio. Você não viu A Estrutura Ausente, do Umberto Eco? ... Já está circulando, traduzida para uma língua vagamente aparentada com o português. Compre logo, e leia se puder: porque quem não se informa não comunica, e quem não comunica se estrumbica, conforme adverte o sábio Chacrinha (cada povo tendo o Mc Luhan que merece).

Graças ao “estruturalismo” no seio das humanidades estrepitosamente tornadas “científicas”, vinga e prospera o mais franco terrorismo terminológico. A seu lado, todavia, pontifica um não menor “terrorismo metodológico” (Starobinski). Pois o estruturalismo é o paraíso do Método; a nova crítica, por exemplo, se alimenta do mito do Modelo mecanicamente aplicável. Pós-graduandos incrivelmente ignaros, outrora incapazes, por simples analfabetismo, de empreender a interpretação de obras pejadas de referências culturais, agora se entregam sem nenhuma inibição à volúpia de aplicar a torto e a direito modelos “científicos” de análise. O Método está ao alcance de todos (em módicas prestações); e “o crítico é o seu método”, sentencia com fervor um dos mais recentes oficiantes do culto estruturalista. A interpretação literária se converte numa espécie de gincana: o negócio é acumular as “leituras” segundo São Propp, São Greimas, São Todorov, São Genette et caterva, a menos que se venere o guru supremo da sofisticação lingüística, o staretz do M. I. T., Roman Jakobson, para quem poesia é pura combinatória verbal, e o único aspecto referencial extralingüístico digno de atenção na literatura se limita a sua relação com as demais artes (cf. JAKOBSON, Roman. “Questions de Poétique”. Paris, Seuil, 1973, p. 145-151).

Não existe um estruturalismo: existem no mínimo vários, tão diferentes na inspiração quanto no grau de consistência dos seus resultados. A ninguém ocorreria comparar a sério pesquisas do porte da história das religiões comparativas de Dumézil, em quem a revolução antropológica levi-straussiana reconhece um estruturalista avant la lettre, com as gratuitas elucubraçõezinhas de Genette ou Todorov; e seria altamente injusto equiparar a problemática de um Foucault aos graciosos arabescos especulativos, totalmente despojados de gume sociológico, de Althusser e sua súcia. Mas é em vão. O estruturalismo mítico subjuga todas as denúncias, repele todas as discriminações e usurpa o magistério humanístico. Como esperar da Ciência redentora que atenda às recriminações dos “passadistas”? ... No máximo, o Saber estrutural se limita a devorar seus ídolos. Lévi-Strauss já era; viva Lacan!... Quanto a Jacques Derrida, derrubou com galhardia o próprio totem do novo credo: Saussure em pessoa.

O mito da Ciência se expande, mas o senso de objetividade declina. Voltemos ao caso da crítica literária. Naturalmente, a crítica estruturalista sempre exorta gravemente a “ir ao texto”. Na realidade, porém, a penúria de exames objetivos, a indigência de análises genuinamente imanentes, tem sido a regra. Segundo a censura insuspeita de Lévi-Strauss, a crítica dita estrutural sofre de crônico ventriloqüismo: em vez de avançar, laboriosamente, na inteligência do texto, projeta quase sempre nele as fantasias teórico-metodológicas do crítico parisiense (ou de seus entediantes discípulos). Como o fetichismo do método “científico”, a mística da “textualidade” mal encobre a grossa arbitrariedade das interpretações. Apesar de sacralizado, o texto vira mero pretexto... “Tia” Estilística, essa excelente senhora tão caluniada, era bem mais sensível, bem mais escrupulosa, em face do discurso poético.

É certo que a estilística era praticada por gente da sensibilidade e da cultura de um Spitzer, um Auerbach ou um Augusto Meyer, e não por universitariozinhos tecnocráticos de consternadora estreiteza mental, como T. Todorov ou esses sinistros jakobsonianos tupiniquins. De acordo com a doutrina estruturalista, a superioridade de um Jakobson, em relação a Spitzer e Auerbach, reside no método. Essa supervalorização do método espelha uma crendice típica – a de achar que Jakobson, por ser um dos pilotos da revolução científica na lingüística, é também automaticamente “científico” quando pia no terreno da crítica, onde, aliás, não é raro vê-lo “sacar” tranqüilamente a propósito de assuntos em que não goza de nenhuma autoridade especial, como, por exemplo, história da arte. Mas essa repugnância em reconhecer a diversidade de jurisdição dos setores – lingüístico e literário (diversidade que não exclui, bem entendido, a existência de importantes relações entre ambos) – não tem absolutamente nada de científica. A história se repete: no estruturalismo, como ontem no positivismo, o mito da Ciência violenta os próprios hábitos, e o próprio rigor, da verdade ciência.

O pedantismo e a esterilidade estruturalistas assolam Paris. Tanto assim, que já se observa o esboço de uma sadia reação. Serge Moscovici, por exemplo – autor do notável “La societé contre Nature” –, acaba de passar uma espinafração em regra nos “epistemocratas”, esses viciados num coquetel bem parisiense: a “batida” de gauchisme irresponsável com bizantinismo intelectual. E até o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, flor da sacação pós-estruturalista, já vem sendo considerado uma regressão, descabeladamente metafísica, a posições pré-(e não pós-, como pretendem seus autores) freudianas.

Entre nós, porém, a praga atua de modo mais daninho. O pedantismo da “matriz” (cinqüenta anos depois da explosão ao mesmo tempo nacionalizante e universalista do modernismo, voltamos a macaquear abjetamente os piores aspectos da cultura francesa), o abuso agressivo de terminologia superfluamente hermética em lugar do real trabalho de análise, quase nunca depara, neste Brasil de jovens e precaríssimas universidades, com a resistência da pesquisa séria e do ensino crítico. Ao contrário: como as universidades “brotam” agora (numa expressão demasiado rápida para ser levada a sério), e os ignorantes se diplomam e se doutoram às centenas, a arrogância intelectual mais oca e mais inepta se dá facilmente ares dogmáticos de ciência exclusiva. No entanto, os sacerdotes do Método não sabem sequer português. Nossa ensaística atual é o paraíso do solecismo, o éden do barbarismo. Se você encontrar um título sobre “escritura”, não creia que se trata de uma obra para tabeliães: trata-se mesmo é de “écriture”, que os nossos preclaros estruturalistas não sabem traduzir por “escrita”... ¹

A estruturalice nacional se proclama revolucionária. Como certos vanguardismos paranóicos, que, por mais que se digam ferozmente antiacadêmicos, jamais conseguiram disfarçar sua natureza de subversõezinhas tão vazias quanto ritualísticas, sempre consentidas, quando não programadas, pelo establishment cultural, o estruturalismo corteja a fraseologia da ruptura. Contudo, por trás dessa belicosidade ideológica, podemos vislumbrar uma conivência bem conformista com a situação crítica da intelligentsia latino-americana e, em particular, com a crise da educação superior. Não é por acaso que o ator ou espectador por excelência do festival estruturalista é o aluno ou ex-aluno da universidade massificada; da universidade que, desejando-se socialmente antielitista, por fidelidade ao imperativo da democratização do ensino, vem destruindo, consciente ou inconscientemente, o outro elitismo da universidade tradicional – o seu legítimo aristocratismo intelectual.

O fetichismo dos métodos simplistas, a superstição mais do que ingênua da “cientificidade” incomprovada (patente no fascínio pelos modelos lingüísticos como panacéia hermenêutica), o prestígio do palavreado abstruso, o servilismo bobo diante das fontes estrangeiras erigidas em oráculo mítico, numa palavra, todos os semblantes do “terror” estruturalista possuem o mesmo pressuposto – a rarefação do espírito crítico cansada e estimulada pelo abaixamento intelectual da universidade, no preciso instante em que esta se lança a abranger ou incorporar a quase totalidade do trabalho literário e erudito. Não é à toa que a universidade brasileira menos atraída pelo delírio estruturalóide – a USP – é a mais sedimentada, a mais amadurecida das nossas instituições do gênero.

Para o lukacsiano Carlos Nelson Coutinho, a voga estruturalista (em que ele não distingue o joio do trigo) é pura ideologia burguesa – a ideologia dos anos prósperos e doces da sociedade de consumo, “filosofia” sucessora da onda existencialista, que teria sido um reflexo das angústias do pós-guerra. Será?... Essa interpretação que ignora candidamente os avatares da alienação ideológica nas sociedades não-capitalistas, joga com correlações macro-sociológicas muito pouco mediatizadas. Qualquer que seja a dialética entre a estruturalice e a evolução social global, tudo indica que ela passa pela dinâmica interna da intelligentsia e de seus âmbitos institucionais, o primeiro dentre estes sendo, nestes tempos de “revolução educacional” (T. Parsons) a universidade. E é essa dinâmica interna – posta em conexão com os notórios defeitos e deficiências dos processos de vida intelectual no Brasil – que parece explicar os aspectos teratológicos do clima estruturalista no arraial literário, filosófico e (lato sensu) sociológico. Uma coisa é certa: dos estruturalismos europeus, a variante verde e amarela tende decididamente a desconhecer o que têm de positivo, e a agravar o que trazem de mau. Entretanto, se, ao exacerbar as taras do seu paradigma parisiense, o estruturalismo dos pobres é caricatura, ao denunciar fidedignamente as distorções do nosso ambiente universitário, ele se faz retrato. Por isso, se o “estruturalismo” é, em si, uma inutilidade, muito útil se torna estudar as condições de florescimento do estruturalismo dos pobres – o que é a melhor maneira de desmistificá-lo.

Nota:

1 – Bem sei que escritura, em português, é também sinônimo de escrita; aparece precisamente nesse sentido até num antigalicista feroz como Filinto Elísio (Carta ao amigo Brito, versos 9 e 34). Tratando-se, porém, de uma acepção em desuso, não seria ingênuo supor – quando ela ocorre em textos inçados de “decodificações”, “literariedades” e outros francesismos gratuitos – que a palavra resulta de uma escolha estilística, e não da ignorância do vernáculo por tradutores de meia tigela?

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