Recuperação da vida da Razão e suas deformações modernas - (Parte 1)
Eric Voegelin
O desdobramento da consciência noética na psique dos filósofos clássicos não é uma “idéia” ou uma “tradição”, mas um evento na história da humanidade. Os símbolos desenvolvidos no seu curso são “verdadeiros”, no sentido de que articulam, de modo inteligível, a experiência de inquietação existencial no processo de tornarem-se luminosos à cognição.
Embora a análise clássica não seja a primeira nem a última simbolização da humanidade do homem à procura de sua relação com o fundamento divino, ela é a primeira que articula a estrutura da busca mesma: da ansiedade que oferece a resposta ao questionamento, do Nous divino como indutor da busca, da alegria da participação luminosa quando o homem responde à teofania, e da existência tornando-se luminosa cognitivamente por seu significado como movimento na metaxy da mortalidade à imortalidade.
A articulação da estrutura foi tão bem sucedida que mesmo a revolta egofânica moderna contra a constituição teofânica da humanidade do homem tem de usar a linguagem da análise noética se quiser ser inteligível, confirmando, desse modo, a solidez da articulação daqueles filósofos.
Verdadeiros insights acerca da Razão como força ordenadora na existência foram, certamente, obtidos; mas tiveram de ser obtidos como exegese da resistência do filósofo à desordem pessoal e social da época, e que ameaçavam engoli-lo. Separar a “verdade” da compreensão do esforço de resistência seria absurdo para um insight dentro da estrutura intermediária¹ da existência.
A vida da Razão não é uma informação valiosa para ser guardada e resgatada depois, ela é a luta na metaxy pela ordem imortalizante da psique contra as forças mortalizantes da ânsia apeirôntica de ser no Tempo. A existência na participação entre o divino e o humano, entre perfeição e imperfeição, entre razão e paixões, entre conhecimento e ignorância, entre imortalidade e mortalidade, não é abolida quando torna-se luminosa a si - mesma. O que mudou por meio da diferenciação da Razão foi o nível de consciência crítica em relação à ordem da existência.
Os filósofos clássicos estavam conscientes dessa mudança como um evento memorável; estavam plenamente atentos às funções educacionais, de diagnóstico e terapêuticas de suas descobertas; e lançaram as fundações da psicopatologia crítica que mais tarde seria elaborada pelos estóicos. Não podiam prever, contudo, as vicissitudes às quais suas realizações seriam expostas quando adentrassem a história e se tornassem fator integrante nas culturas das sociedades helênicas, cristãs, islâmicas e nas modernas sociedades ocidentais.
Não podiam prever a incorporação da filosofia em diversas teologias revelatórias, nem a transformação da filosofia em metafísicas proposicionais. Acima de tudo, não podiam prever a separação radical do simbolismo noético que haviam criado a partir do contexto experiencial, de modo que o vocabulário filosófico estivesse livre para dotar de aparência de Razão o ataque à Razão.
A dinâmica da resistência dos filósofos clássicos moveu-se da deteriorização do mito cosmológico e da revolta sofística em direção ao “amor pela sabedoria”. Eles não antecipavam um futuro distante no qual a revolta egofânica pervertesse o significado dos símbolos noéticos, a extensiva degradation des symboles como chamou Mircea Eliade esse fenômeno moderno, de modo que a dinâmica da resistência tivesse de se deslocar de um sistema de pensadores em estado de alienação em direção, novamente, à consciência noética.
Expor os insights clássicos como relíquias doxográficas não seria apenas inútil, mas destruiria seu significado de expressão da resistência humana à desordem mortalizante da época. Para a vida da Razão manter-se viva, não só os insights devem ser lembrados, mas também a resistência contra o “clima de opinião” (Whitehead) deve ser continuada.
1- In-Between, é o termo utilizado por Voegelin para representar a experiência da existência humana entre o divino e o mortal, a metaxy platônica. Participação.
Tradução: E. Santiago